AMOR E REDENÇÃO >> Zoraya Cesar

O dito ‘pobre, mas limpinho’ seria até injusto, se aplicado ao apartamento. Era, perdoem o superlativo - limpíssimo. E de uma simplicidade espartana.

Na sala, uma mesa, duas cadeiras, um sofá onde mal cabiam duas pessoas, e cujo estofado merecia uma troca, uma televisão de tubo. Banheiro e cozinha só continham o absolutamente essencial. Aliás, no apartamento inteiro não se viam enfeites ou adereços, nada de toalha na mesa, quadros nas paredes – descoloridas num soturno tom de branco gelo – ou flores em qualquer canto. Tudo seco como um osso.

Ali vivia um casal.  Vamos nos concentrar na mulher, afinal, ela é a protagonista dessa história. 

Pequena, não gorda, mas rechonchuda – ficava muito bem no uniforme de enfermeira, que mal tirava, por conta dos inúmeros plantões. Devia ter 40 anos, um pouco mais, um pouco menos, impossível dizer pelo rosto, onde as rugas apenas se pressentiam. Seus cabelos louros e cacheados eram curtos, naquele corte prático do tipo ‘lavou, tá pronto’. Os olhos, claros e doces, não deixavam transparecer qualquer tristeza, guardiões implacáveis que eram da verdade que se escondia no peito da mulher.

Melinda apanhava do marido. Sempre? Não. Mas apanhava.

Quando se casaram, ela, jovem e pobre, morava num quarto alugado. Trabalhava e estudava, vendendo o almoço para comer o jantar. Ele lhe ofereceu estabilidade e um lugar para chamar de seu. Houve alguns momentos bons, sim, houve. Mas que foram escasseando até desaparecerem, substituídos por abusos verbais e, mais tarde, físicos.

E por que, perguntaria você, ela não o abandonou, denunciou, por que não fugiu? Talvez porque nada seja simples assim. Talvez porque ele ameaçasse matá-la. Talvez porque ele tivesse uma arma. Não sei. E nem vamos adentrar nesses méritos. Estamos aqui para contar uma história. Uma história de amor.

Naquele breu que era a vida de Melinda, surgiu uma luz. E seu nome era John Marcos.

John Marcos era policial, fazia bico de segurança no hospital no qual ela trabalhava e era 15 anos mais moço que Melinda. Sempre reparara na enfermeira baixinha e gentil, de olhos mansos e poucas palavras, que trazia um ricto de amargura no canto da boca. Uma noite, tomou coragem e sentou-se em frente a ela na lanchonete. Notou a mancha arroxeada em sua têmpora, mesmo disfarçada sob a pesada maquiagem. Não disse nada, não demonstrou curiosidade ou pena. Apenas olhou-a no fundo dos olhos, severo e triste. Melinda percebeu duas coisas: que ele descobrira seu segredo; e que aquele era um homem de verdade. Seu coração triturado pelo sofrimento calado caiu de amor.

Encontravam-se nos plantões, e, sempre que podiam, davam-se as mãos, ainda que por breves instantes. Nada de beijos escandalosos, sexo, sarros, nada. Apenas romance. Quando ele propôs que ficassem juntos, Melinda não aceitou, apavorada que seu marido o matasse. John Marcos não insistiu, não seria ele que transtornaria ainda mais a vida da mulher que amava. Mas, num dia em que ela apareceu machucada de novo, ele se trancou no banheiro e chorou.

Resolveu tomar uma atitude. Se Melinda iria ficar com o marido, que pelo menos não apanhasse mais. Ele acertaria a vida dela e se afastaria, deixando-a em paz e segura. Se algum dia sua amada precisasse, era só chamar. Bem pensado e assim feito.

Acompanhou-a à distância, como sempre fazia, para se certificar que, ao menos até chegar em casa, ela estaria a salvo. A rua estava escura naquela noite que já ia alta. John Marcos esperou. Sabia que o marido descia, todas as noites, depois que ela chegava, para beber e farrear. Pretendia dar-lhe uma prensa, mostrar que maltratar Melinda poderia acabar muito mal para ele.

O plano, porém, não correu como esperado. O sujeito desceu armado e alterado pela bebida que tomara em casa. Sacou a arma contra John Marcos, que passou a brigar pela própria vida, numa luta terrível em que não dava para saber quem estava levando a melhor. E que só acabou quando o marido de Melinda recebeu dois tiros no peito.

Mesmo quando os envolvidos não têm dinheiro, a justiça às vezes funciona. O defensor de John Marcos conseguiu provar que seu cliente agira em legítima defesa. Nem mesmo o fato de que ele e a mulher do falecido tinham um envolvimento amoroso empanou a tese da defesa. John Marcos ficou preso? Sim. Por pouco tempo, mas ficou.

E o que aconteceu? John Marcos está solto. Melinda, viúva.

Se você entrasse, hoje, no apartamento de Melinda, teria dificuldade em reconhecê-lo. Continuava – peço licença para repetir o superlativo – limpíssimo. Numa das paredes, agora coloridas, havia quadros pendurados. O estofado do sofá era novo. Sobre a mesa, uma toalha bonita, um bolo recém-feito e duas xícaras de café. Havia flores, também.

Dê, por favor, uma rápida e discreta espiada no quarto. Você verá John Marcos dormindo, exausto e abatido, mas sorrindo. Abraçada a ele, Melinda esperava seu amado acordar para que pudessem começar a viver o resto da vida juntos.

Uma vida que ele lhe dera ao assumir a culpa pela morte do marido que ela matara.







Pessoal Querido, Leitores Amáveis: estou de férias. Volto em dezembro. Obrigada por tudo. E me aguardem!

Foto: Daria Sukhorukova in Unsplash / Free HD Photos


Comentários

Anônimo disse…
Como assim o marido que ela matara?eu pisquei e perdi alguma coisa? Kkkk. Apesar da impressão de que eu dormi no meio do filme, foi fofo rs
Anônimo disse…
Então, a suposta luta foi forjada?
Ficou um lapso estranho!
Para variar, mais um defunto, um pouco de sadomasoquismo, e sacanagem que é bom nada, hahaha...
Marcio disse…
Cheguei a pensar que, durante a prisão de John Marcos, a Melinda aprontaria alguma.
pois é, espaço criativo dentro da criação!

vamos colocar nossa imaginação pra funcionar!

beijo!
Unknown disse…
Cara Zoraya, chamo-me Rodrigo e sou irmão de um contato seu no FB. Parabéns, a história está muito bem contada.
Anônimo disse…
Pessoas, leiam direito. A luta só acabou quando o marido de Melinda levou 2 tiros no peito. Não diz QUEM atirou. A gente é que infere que foi o John! Brilhante sacada. Adorei. Aretuza
Carla Dias disse…
Zoraya, minha cara, você enreda personagens de um jeito tão bom de se ler. :)
Beijo!
André Ferrer disse…
Outro texto incrível da Zoraya. Boas férias!
Albir disse…
Um amor de história de amor.
Divirta-se, mas remeta-nos os diários de viagem.
Zoraya disse…
Pessoal, muito obrigada! E revelo que Melinda e John Marcos estão muito felizes.

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