AOS VIVOS >> Carla Dias >>
Sim, nós acabamos. Ninguém vive uma vida que não tenha o elemento surpresa agindo somente no quando, porque o fato, esse não é maleável, sujeito a improvisos.
Nós acabamos.
Muitos pensam que essa é a fragilidade da vida. Acredito que a consciência sobre a única certeza que temos, a morte, concede ao ser humano a oportunidade de compreender, sem desvios ou floreios, que a vida deve ser preenchida com experiências que a enriqueçam, não desperdiçada com questões rasas.
Sim, temos data de validade. E aceito que, apesar de saber quão valiosa é a vida, do pouco tempo que ela dura, pego-me gastando parte dela a flertar com tolices. Veja bem, tolices não são levezas, porque das levezas a vida precisa. Tolices são acontecimentos, mágoas, desapontamentos, tudo ao que nos apegamos e que, de fato, não interessa, ou que já foi e deixou consequências que devemos encarar.
Morte, para mim, entre tantas coisas, é silêncio. Um profundo silêncio. Para quem tem a capacidade de gravar a voz das pessoas mais caras, porque afeto sempre refina a percepção, as vozes dos que se foram tocam feito canção delicada na minha cabeça.
Não tenho a sabedoria dos que lidam com a morte combinando a consciência – e aceitação – de que ela é consequência da vida, com o discernimento para lidar com a saudade daqueles que se foram. Apesar de saber disso, escolhi lidar com ela como o poeta louco, trancado em um cômodo no meio do mundo, ávido por discutir com a morte as suas intenções com a vida. Porque a relação entre vida e morte é feito um longo e tempestuoso relacionamento que, eventualmente, chegará ao fim. E a morte será aquela que vai se retirar, deixando para a vida – dos que ainda dela usufruem – a ausência de uma presença. Uma sala vazia.
Com o tempo, tornamo-nos escolados em lidar com salas vazias. Porém, isso não significa que a morte tenha se tornado digerível com facilidade capaz de nos aprumar, cinco segundos depois da missa de sétimo dia. A morte de quem não conhecemos, ou com quem não tivemos uma relação profunda de afeto, essa serve como lembrete de que também nós estamos sujeitos a ela. Ela nos serve como atiçadora da reflexão sobre o que fazemos das nossas vidas que nos tornará dignos de habitar as lembranças dos que ficam.
O meu poeta louco, incapaz de silenciar diante da inflexibilidade da morte, termina seu poema-catarse aos berros. O silêncio profundo é o que mais teme em vida e não deseja para a morte. Mas não o julguem mal, que essa atenção que ele dá à morte é justamente porque ele a respeita profundamente. E porque lhe agonia um tanto quando percebe que gastou raro tempo com aquelas tais tolices. Sabe que irá fazê-lo novamente, mas talvez menos que antes. E porque lhe dói cadenciado a saudade dos seus, dos que já partiram dele. Daqueles que aprendeu a amar, dos quais herdou a ausência e aos quais dedica seus poemas-saudade, crente de que a eternidade, ah, essa insana, mora no fôlego da morte.
Imagem: Kiss of Death © Włodzimierz Błocki
carladias.com
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