UMA HISTÓRIA QUALQUER >> Carla Dias >>


Norma chegou ao mundo há muitas décadas. Não é das pessoas que têm problemas com a idade, mas isso não significa que aprecia distribuir essa informação a troco de nada. No entanto, com frequência, a burocracia a faz praticamente gritar sua data de nascimento.

— O que disse senhora?
— ... de mil e novecentos e...
— Entendi nada, minha senhora. Pode repetir, de preferência mais alto?
— 2 de julho de 1935, diabos! Eu que deveria estar surda, não?

O que realmente a aflige não é o tempo que lhe toca a existência, mas ter de declamar a informação diante de um número considerável de desconhecidos. Há sempre entre eles alguém que não consegue se segurar e tenta interagir com ela.

— Nossa, mas a senhora está ótima pra idade que tem.
— Quanta sabedoria deve ter acumulado, hein?
— Tenho certeza de que já viu muita coisa nessa vida.
— Seus filhos devem estar orgulhosos, porque a senhora consegue sair sozinha de casa.

Envelhecer lhe dá nos nervos.

A vida lhe ofereceu, além de momentos inesquecíveis — para o bem e para o mal, uma artrose de teimosia sem fim. Andar se tornou desconfortável, o que nunca foi motivo para abandonar as caminhadas no jardim de casa, lugar que a leva a flertar com a felicidade... por alguns minutos.
Acha a felicidade um calmante disfarçado de euforia, viciante.

Quanto à autonomia para andar por aí sozinha, essa ela praticou com a solidão mesmo. Nasceu filha única, de família minguada. Não se casou, não teve filhos. Amigos ela tem, mas não é das pessoas mais sociáveis. Assim, vive a faltar no tradicional Chá de Domingo, na casa de Lucia, a mais nova da turma. 
A distância que mantém das pessoas é o que a mantém desacompanhada em salas de espera. Tem se saído bem, ainda que seu corpo insista em tentar mudar esse pensamento dela.

Gosta de piano, desde criança. Os pais a proibiram de estudar música, “coisa de gente maluca”, diziam. A contradição sempre a incomodou, porque eles adoravam as festas dos amigos, com bebidas que não podiam comprar e apresentações de música clássica. Mas isso não atrapalhou sua cumplicidade com a música, e se tornou uma ouvinte exemplar. Que o digam seus companheiros, Jobim, Mozart e Evans. Aliás, eles detestam televisão. Às vezes, ela decide distrair a cabeça com alguma novela, mas os gatos pulam em seu colo e reclamam, até que, sem condições de acompanhar a trama, ela desliga a tevê e se rende ao desejo deles. Coloca um disco para tocar e senta-se em sua cadeira de balanço, acompanhada de um livro.

Então, Jobim, Mozart e Evans se acalmam aos pés dela.

Sua casa fica em um ponto que se tornou muito interessante para o mercado imobiliário. É onde nasceu, cresceu e sabe que irá morrer. Já recusou ofertas de compra tentadoras, mas somente para as colegas da ioga. Ela nunca considerou proposta que fosse. Sua história vive com ela nessa casa, e dela sairá somente quando o que lhe restar for o silêncio absoluto. O corpo inerte.

A relutância em aceitar as propostas oferecidas pelo imóvel lhe rendeu um grande problema. Um dos empreiteiros interessados alegou que a cabeça dela estava bagunçada, sua saúde era delicada, por isso, ela não tinha como cuidar de si, o que dirá de uma casa daquele tamanho. E ela era grande mesmo, cinco quartos, sala de estar e de jantar, quarto de empregada, três banheiros, despensa, uma cozinha onde, quando era criança, imaginava um salão de dança cheio de pares.

Seus pais dormiam separados quando discutiam, por isso um dos quartos servia de refúgio para quem decidisse ser o primeiro ofendido a se retirar. Ela tinha seu quarto, um foi adaptado para ser o ateliê de costura da mãe, e dois viviam trancados. Lembra-se de ficar em pé, diante daquelas portas tristes, que nunca permitiam entrada de visitas ou olhares curiosos. Neles vivia a memória dos gêmeos que não vingaram. Eram cômodos mobiliados com tudo o que os meninos nunca conheceram, porque chegaram ao mundo quebrados, Um deles durou dois dias, o outro, dois dias e algumas horas.

Quando os pais morreram — o pai primeiro e a mãe alguns meses depois dele —, ela tinha vinte e cinco anos. Mudou-se para o quarto principal, transformou o seu antigo em biblioteca, e o ateliê, em escritório. Derrubou a porta do quarto dos meninos e nunca mais colocou outras no lugar. Lembra-se da crosta de pó sobre os móveis novos, mas tão antigos na dor que perpetuaram.

Por causa da conversa do empreiteiro, fortalecida pelo testemunho de um vizinho que nunca se deu bem com ela, Norma teve de fazer acompanhamento com uma psicóloga, a pessoa que se tornou responsável por confirmar, uma vez por semana, se ela ainda é capaz de continuar a levar a vida nos seus próprios termos.

— Como foi a semana, Norma? Você sabe que tem de falar comigo, né? E a saúde?

Norma a deixava responder as perguntas que fazia. Juliana gostava da companhia dela, apesar do seu silêncio. Aos poucos, tornou-se comum a psicóloga falar sobre si em vez de insistir em saber sobre ela. Não tardou até que Norma começasse a lhe dar alguns conselhos, relacionados aos assuntos da rotina de casa, mas também aos abismos que Juliana insistia em manter sob os pés.

Ela teve de trocar de psicóloga. Juliana foi definitiva em sua afirmação: “se você não conversar e mostrar que está bem, perderá sua liberdade”. Assim, Norma passou a consultar outro psicólogo, um senhor muito simpático, que usa um perfume agradável. Para mostrar que é capaz de se cuidar, ela conta alguns inventados, porque não quer sua intimidade exposta a quem não escolheu se revelar. Conta histórias para mostrar ser capaz de fazer suas escolhas. Às vezes, pega algumas emprestadas de seus livros preferidos.

Juliana passou a visitá-la toda semana. Elas conversam, tomam chá e, no final da tarde, algo mais forte. Escutam música enquanto Jobim, Mozart e Evans se revezam aos pés delas. Eles gostam de Juliana. Norma gosta de Juliana.

Sua vida tem sido um emaranhado de acontecimentos contrastantes. Foi feliz por muitas vezes, o que gerou uma série de boas lembranças que costuma revisitar. Às vezes, pega-se gargalhando baixo, como se evitasse que alguém escutasse tal som sair dela. A tristeza a visitou com mais frequência do que a felicidade, mas isso ela entende. Ser feliz é trabalhoso. Às vezes, desiste-se de sê-lo no meio da jornada.
Ela protagonizou muitas desistências.

Amou, mas não foi amada de volta. Não foi amor de brevidade, mas de décadas sentindo o coração se despedaçar, diariamente. Também não foi amor da distância, pois ele se casou com sua vizinha. Norma passou muito tempo presenciando a felicidade deles. Quase sempre, não desejava que ela acabasse. Às vezes, desejava que ela morresse.

A felicidade deles não morreu, mas quase a matou de tristeza. 

Acha a felicidade uma inspiradora de mágoas.

Juliana diz um não choroso, mas depois aceita, compreendendo o quanto é importante para ela. Norma se sente exultante por tomar decisão tão importante sem que a insanidade conste na documentação. A clareza de sua mente tem sido vantagem e desvantagem na vida, já que há dias em que, para ela, a verdade nada mais é do que um enfeite para enganar realidade.

Norma assina o documento e Juliana se torna sua herdeira de história: casa, discos e gatos. Assim que descansa a caneta sobre o papel, uma tranquilidade inédita lhe toma o corpo e a mente.

Sorri para Juliana, diz “boa noite” e segue para o quarto. Mesmo sendo difícil fazer o caminho dos degraus, que tenha de se agarrar ao corrimão até chegar ao topo da escada, não consegue se imaginar impedida de seguir seu caminho.

Deita-se em sua cama, pensando que não há o que lhe aflija no momento. Tira, de debaixo do travesseiro, uma foto dos pais, muito jovens, sorrindo como ela nunca os viu sorrir em presença, e outra dos irmãos, deitados, lado a lado, olhos cerrados para a vida.

Nunca disse os nomes deles em voz alta. Acha que dizer em voz alta é criar música de fazer a audição se abrir para o risco de sentir saudade. Como a que sente de abraço, como aquele que seu amor entregava à vizinha, nos finais de tarde, ao chegar do trabalho; aquele que seus pais lhe davam, várias vezes durante o dia, e muito mais demorado, logo depois de se deitar para dormir. E aquele que nunca aconteceu, o dos meninos do quarto trancado.

Coloca as fotos de volta debaixo do travesseiro. Adormece. 

Silêncio absoluto.
Corpo inerte.

Imagem © Albert von Keller

carladias.com

Comentários

Zoraya disse…
Só você mesmo pra escrever uma história linda, comovente e triste ao mesmo tempo. Só você.
Carla Dias disse…
Ah, Zoraya! Nem sei mais como agradecê-la. Beijos!

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