CONDOMÍNIO >> Zoraya Cesar

Engraçado como seres civilizados podem se transformar em monstros irracionais quando se trata de reunião de condomínio. Engraçado, também, como estes seres, que chegam quase às vias de fato contra o vizinho, no dia seguinte estão conversando amigavelmente sobre o futebol, a carestia, o tempo lá fora.

O que não é engraçado são os pensamentos escondidos atrás de toda essa fachada. Porque, terminada a reunião, há mágoas que não se apagam junto com as luzes. A verdade, Leitores Amigos, é que todos temos duas caras, e você pode até conhecer a sua própria face oculta, mas nunca imagina que a do vizinho pode ser ainda mais feia.  

D. Julinha iria morrer sem entender por que pessoas – algumas – tão inteligentes votavam seguidamente em D. Glória para síndica. A mulher era uma imprestável, o condomínio estava sempre no vermelho e não havia taxa extra que desse jeito. No entanto, como ela era um tanto quanto rude, muitos achavam que ela tinha pulso forte para levar o condomínio adiante. Levar abaixo, isso sim, resmungava muito internamente D. Julinha, pois tais considerações pouco abonadoras a doce e respeitável velhinha do 8º andar guardava-as para si mesma, discretíssima que era.  

Eu disse que D. Julinha iria morrer sem entender? Talvez, um dia. Mas certamente depois de D. Glória, que foi encontrada pelo faxineiro, às 6 horas da manhã, morta, dura e roxa, caída nos degraus da escada. 

Imediatamente, afazeres importantíssimos e inadiáveis cederam lugar a tantas especulações, conversas e sussurros que, antes mesmo de a polícia chegar, o condomínio inteiro concluíra que D. Gloria andara abusando do malte escocês novamente. 

Malte escocês ou bourbon francês, de qualquer maneira a polícia era obrigada a investigar a morte. E na autopsia descobriram traços de rohypnol, droga que faz parte do coquetel boa noite cinderela. O quê? Como? Então D. Gloria misturava álcool com remédios? Ninguém do prédio podia acreditar na hipótese de assassinato, pois isso implicaria o envolvimento de algum vizinho, e todos ali se conheciam, eram todas pessoas boas... Mas a polícia – que conhece bem os seres humanos - não se prende a essas sutilezas, e sabe que as pessoas matam, em geral, por dinheiro ou para garantir alguma vantagem pessoal. Dinheiro não era, pois D. Gloria não tinha parentes a quem deixar sua herança. 

Então, pensou a polícia, a quem interessaria a morte da síndica?

D. Julinha servia chá com bolo ao investigador, enquanto conversavam O policial soubera ser ela a pessoa mais respeitada do prédio, e, com jeitinho de neto carente, acabou por fazer a discreta senhora revelar alguns detalhes deveras interessantes. 

- Pois é, meu filho, na noite em que Gloria morreu, que Deus a tenha, estivemos eu e ela no apartamento de D. Aurélia, para jogar uma biribinha, você sabe, jogo de velhas – e riu. Aurélia é muito gentil, serviu uns licorezinhos de jenipapo para a falecida, e um chazinho para mim. Eu não bebo...

Amaciada em seu ego de doceira, D. Julinha abriu a guarda e inocentemente discorreu sobre a relação das três senhoras, em como eram amigas, apesar de Aurélia ter inveja de Glória, pois sempre tentara se eleger síndica, mas o máximo que chegava era a subsíndica. 

- Eu mesma me candidatei, uma vez, mas a Gloria era imbatível – confessou ente golinhos de chá. 

O inspetor mal conteve a excitação, até que enfim uma pista! O que aconteceu depois, D. Julinha, perguntou, comendo mais um pedaço do bolo. 

- Depois do jogo eu fui logo embora, mas as duas ainda ficaram mais um pouco.

Alguns dias depois, D. Aurélia foi presa, acusada de homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe (assumir o lugar da morta como síndica) e meios vis (drogar a vítima e friamente jogá-la escada abaixo). A mais forte prova dessa tese foi o frasco, encontrado escondido no banheiro da suspeita, contendo resquícios da mesma substância química encontrada no corpo da vítima. De nada adiantou os advogados proclamarem o absurdo do evento, nem d. Aurélia gritar sua inocência dia e noite.  

A síndica, morta; a subsíndica, presa. Uma assembléia de emergência foi convocada para uma nova eleição. D. Julinha queria muito ver se ela não seria escolhida. Se não fosse... bem, o novo síndico que se cuidasse. 

Pois fora tão fácil esperar o momento certo, durante o encontro das três na casa de Aurélia, aproveitar um instante de distração da anfitriã para entrar rápida e despercebidamente no banheiro, e esconder a droga. Sair mais cedo e esperar a síndica no corredor, forjando um encontro casual, e convidando-a para mais uma bebidinha, a cretina nunca resistia a um convite desses, quanto mais de graça. Servir-lhe um bom malte escocês - comprado especialmente para quando a ocasião propícia se manifestasse -, misturado com a droga, esperar o efeito e simplesmente levar a aturdida Gloria para as escadas e empurrá-la. Quebrar o pescoço e morrer era quase certo, cheia de osteoporose como era aquela velha chata. E se não morresse logo, ela, D. Julinha, teria dado uma ajuda extra. 

Afinal, não tinha sido enfermeira a vida inteira antes de se aposentar e a melhor aluna de química da faculdade à toa. Sabia muito bem como misturar as substâncias certas para causar o efeito desejado.

A vitória pertencia aos que sabem esperar, comemorava, bebendo seu chazinho de flor de laranjeira, fazendo um brinde especial à polícia, que caíra tão facilmente em sua artimanha.

Comentários

Anônimo disse…
Essa ficou legal. Velhinha "do capeta", pior que hoje, também na vida real, não dá para confiar em ninguém, principalmente nas mulheres, hahahaha...
Mauro disse…
D. Julinha, quem diria, era uma pestinha! Adorei!
Anônimo disse…
D. Julinha Dexter! hahaha
Erica disse…
Siniiiiiiistraaaaaa a D. Julinha e maquiavélica você Zoraya... espero que essa não tenha sido uma história inspirada em fatos reais..rs
Cecilia Radetic disse…
Caramba, muito boa Zo!
Meu prédio tá precisando de síndico. Será que D. Julinha topa? rsrsrs
Cristiane disse…
Boa! Se quiser pode entrevistar os velhinhos lá do meu prédio... acho que vão te contar histórias mais maquiavélicas!!! A disputa por lá é sinistra!!! kkkkk
aretuza disse…
Caramba, acho que tem uma D. Julinha aqui no prédio....
Anônimo disse…
Vou contar para o meu afeto, acho que em muitos prédios se escondem "donas julinhas"...rs...rs...você está se revelando em tramas criminais, lembro daquela crônica sobre a filha dedicadíssima à mãe doente!
Beijos. Aglae
Yasmin disse…
Adorei! Você é a nossa Agatha Cristie ...
Já estou aguardando uma trama policial em livro ... que tal?

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