O IOGURTE [Carla Cintia Conteiro]


O primeiro incidente que me chamou a atenção e me fez ligar os pontinhos foi a declaração de um sujeito que faz o maior sucesso no circuito ongueiro. O ex-traficante Feijão diz para quem quiser ouvir que o que o fez entrar para o crime foi ver geladeira de traficante cheia de iogurte. Não que ele passasse fome, mas a coalhada industrializada jamais entrou em seu humilde barraco. Depois de virar o chefe de Acari, ser preso, condenado e, segundo afirma, reabilitado, Washington Rimas, nome como Feijão foi registrado, agora tem o iogurte de seus filhinhos pagos por Cacá Diegues e quem mais se interessar em ouvir sua história de superação.

Tem tempo que digo que não é a miséria mas o desejo incontrolável por aquele tênis de marca, provocado pela publicidade feroz que fomenta certos desvios nos jovens. Pelo menos no urbano sudeste brasileiro, onde numa hora de aperto sempre se pode apelar para vender biscoito Globo ou pipoca de saco cor-de-rosa no sinal ou na praia. Isso gera horas de debate com aquele pessoal que congelou uma certa imagem da pobreza, vendida por aí em prosa e verso. São fisgadas nessa armadilha pessoas que ainda conectam, por exemplo, samba com morro. Perderam o bonde do funk. Imaginam o morro como o retratado nas propagandas governamentais, em que os “artistas que representam situações reais” vestem-se como os favelados do filme “Orfeu da Conceição”, de 1959(!).

Esse tipo de gente fica surpresa quando vê a pesquisa da WCF-Brasil sobre prostituição infanto-juvenil revelar que 65% das vítimas crianças e adolescentes entrevistadas usam o dinheiro para comprar bens de consumo, como celulares, tênis e roupa, e 30% usam seus proventos para comprar drogas. Arroz, feijão e carne é pouco. Eles querem iogurte.

Muitas vezes quem assiste à matéria sobre aquela atleta da Rocinha, que anda angariando medalhas por aí, deixa o embaçado das lágrimas, a música sob medida para emocionar e os agradecimentos derramados a pais e treinadores no primeiro plano encobrir, na sala da residência da menina, o computador, a TV e o gigantesco aparelho de som. Quem troca pódio e caderno por escopeta e pó quer iogurte.

Quando eu morava sozinha, deixava a chave com a faxineira de toda confiança, segundo me recomendaram. Ela deixava a casa um brinco. Mas o macarrão com frango, a carne com batata ou o que quer que fosse que eu deixasse separado para ela preparar para seu próprio almoço estava intacto. Em compensação, só encontrava aquele queijo especial pela metade. Da bandeja de iogurte comprada na véspera, nem a embalagem.

Outro dia, um moleque me parou no supermercado e pediu que eu pagasse pela tetrapak de iogurte que ele tinha nas mãos. Falei com ele que pagaria por um litro de leite e uma bisnaga, mas para iogurte o dinheiro que eu tinha não dava. Ele me disse que eu podia deixar pra lá:

— Tia, tu é pão-dura bagaraí.

Os empreendedores de fundo de quintal, mais ousados e mais próximos da realidade do povão, foram os primeiros a perceber o apelo do iogurte. Qualquer giro pelo comércio popular vai demonstrar que o sabor de maior sucesso entre as balas, picolés e sacolés deixou de ser aquele de cor e sabor artificialmente vermelho ou rosado que chamam de morango. Agora o rosa é mais cremoso e o nome é iogurte. Se quiser vender, tudo tem que ter sabor iogurte.

Não pensem vocês que os grandes empresários ficaram atrás. Depois de gastar milhões de dólares para ouvir as cada vez mais poderosas classes C e D, chegaram à conclusão de que essa turma frequenta suas lojas em shoppings e descobriram, por fim, o que eles querem. Assim, ao chegar a uma loja daquela rede de cosméticos onde antes batia ponto exclusivamente a classe média, ou seja, os criados a Danoninho, para comprar aquele mesmo produto que você já usa há anos, uma vendedora com sorriso ensaiado e simpatia forjada vai perguntar se você já conhece a nova linha de produtos. Você vai responder que não, que está com pressa, que só veio mesmo pegar seu creminho. Mas ela foi adestrada para ser insistente. Vai abrir o pote. Vai sacudi-lo primeiro diante dos seus olhos para você ver como a cor e a consistência são iguais às de um fermentado lácteo. Vai, finalmente, enfiar o pote no seu nariz para você conferir que, ao adquirir tão fantástico produto, estará levando para casa a certeza de sair diariamente besuntada como uma porção de granola, cheirando a leite azedo, mergulhada no iogurte.

Iogurte é a última fronteira rumo ao eldorado burguês.

Comentários

Bela sacada, Carla Cíntia! Parabéns.

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