PAPO DE ÔNIBUS [Ana Gonzalez]


Eu subi no ônibus e me sentei na primeira cadeira do corredor que encontrei, cansada e contente por não ter ficado em fila. Havia um senhor de cabelos grisalhos na janela. Assim que o ônibus saiu, ele começou. Imenso, este ônibus, disse. Concordei. Preferia ficar quieta e levar minha pequena jornada em silêncio, mas ele ainda falou algo a que não dei atenção. Ele não se importou e, poucos segundos depois, continuou puxando assunto.

— Quanta gente ao mesmo tempo vai nele. Mais de mil pessoas.

Ops, será que ouvi mal? Um exagero. Não, acho que ouvi mal. Mas ele continuou em várias considerações sobre tamanho de ônibus e população. Logo depois, mudou o assunto.

— Fez quatro anos em março que ele me apareceu da primeira vez. De lá pra cá, mais três vezes. Jesus mudou minha vida.

Imaginei que seria mais uma pessoa que se convertera pela força da fé.

—- Eu não sei ler. Jesus não quis que eu aprendesse. Mais de cem mensagens eu já entreguei que ele mandou. A Igreja hoje tem às vezes só cinqüenta. A senhora é evangélica?

“Não sou.” Se eu fosse, talvez pudesse entender o que é entregar mensagens. Ele continuou em sua discreta incontinência verbal: “Na terra não podemos consertar o mundo. Jesus pode. Ele me ensinou. A bíblia é sagrada.” O cheiro de guardado do blazer de lã não combinava com os sapatos marrons.

— Não aprendi a ler porque Jesus não quis. No ano passado o pastor ficou doente e desenganado. E com as orações ele ficou bom. Sou do Ceará. O povo que vai da Alemanha para o Japão gasta menos tempo que o que vem do Ceará.

“Não aprendi a ler porque ele não quis.” Essa frase repetida doeu em mim. Muito. Talvez tanto como nele próprio.

De repente, fez-se uma ligação entre eu e aquele desconhecido. Ele não era mais um cidadão no ônibus, passageiro anônimo da cidade grande. Era companheiro da triste sina de uma vida difícil, também perdido entre os ônibus. Eu estava sofrendo por imaginar a situação de um desejo interrompido — ferida aberta — e sua atitude respeitosa à autoridade. Eu estava rendida á solidariedade humana através de uma dor.

Era um drama de alguém que se perguntava coisas, procurava comunicação e expressão para as aflições de sua alma curiosa. Alívio para sua insatisfação, cobertura de uma defasagem entre sua expectativa e a realidade. Não podia dar continuidade a seus pensamentos renitentes. Poderia se perguntar: por quê? Mas, não. Parava antes das possibilidades, numa espécie de aceitação, loucura mansa. Delírio? Ele não se dava o direito de questionar por que Jesus não tinha permitido a ele a leitura. Ele que se preocupava com as distâncias do mundo.

Papo de ônibus é assim. Surpresa que, em meio à corrida do dia-a-dia, nos apresenta o ser humano em sua tragédia. Trágico era ele querer ler e não poder investir contra o que no seu imaginário — a autoridade máxima da hierarquia de sua religião — o impedia de ler. Dentro dele não havia espaço para nada diferente disso. Quem sabe? Uma revolta, um questionamento. Uma pedra na mão. Nada. Havia uma parede enorme de inconsciência entre ele e a realidade. Injustiças de um mundo mau. Um desperdício. Um analfabeto funcional em tudo na vida. Um quase. Um projeto mal acabado. Tão desajeitado. É assim.

Imagens: Andy Warhol, Quadro; Tadeu Jungle, Olhos Proibidos

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