FELICIDADES >> Eduardo Loureiro Jr.

Hoje é seu aniversário. Eu queria poder lhe dar os parabéns, lhe telefonar, lhe dar um beijo e um abraço, desejar-lhe um ano novo cheio de alegria e sentido. Eu queria fazer-lhe ao menos uma crônica, mas, se você não ler o que eu escrever, será que eu escrevi realmente alguma coisa?

Há quanto tempo não nos vemos? Quinze, dezesseis anos? Sim, eu a vi uma vez, num shopping, de passagem, há uns doze anos. Você me viu? Dizem que o mundo é pequeno. Se fosse verdade, as cidades seriam minúsculas. Por que então só nos encontramos essa única vez que nem chegou a ser um encontro, foi apenas eu vendo você sem saber se você também me viu? Se o mundo fosse mesmo pequeno, você e eu teríamos nos esbarrado algumas vezes, a última há poucos meses talvez. E o seu olhar no meu talvez pudesse ter aquela alegria que a gente tem ao encontrar as pessoas que marcaram nossa vida

Eu não lembro do seu derradeiro olhar pra mim. Não lembro se foi um olhar de súplica ou de desprezo. Carrego em meu peito uma culpa que não sei se é real. Fiz alguma coisa que tenha lhe magoado profundamente? Às vezes, penso que sim. Outras vezes, penso que... sim. Mas como posso lhe ter feito algo de mau se, em minha memória, predominam alegrias dos nossos momentos? Sua farda desbotada do colégio, seus bilhetes constantes e amorosos, um trecho de poema de Ricardo Reis anotado em um marcador de livros feito por você, uma flor seca de orquídea entre as páginas da bíblia que eu usava à época, seus dedos e sua voz ao violão, o amor feito na praia, sua alegria ao receber meus poemas diários...

Suas derradeiras palavras eu recebi também num aniversário. Era um telegrama. Dizia simplesmente: "Felicidades." Havia ironia ali? Não, era eu o rei da ironia, você sempre foi rainha de coisas mais altas. "Felicidades." As felicidades começaram ali mesmo naquele telegrama. O que falar ou desejar para um amor que se foi? Felicidades. Será que vem daí a minha culpa? De receber felicidades de alguém para quem se entregou tantas outras coisas menos felizes?

Lembro de ter descoberto seu endereço, anos depois, e de ter lhe mandado um telegrama, imitando o seu gesto: "Felicidades." Havia ingratidão ali? Eu já me considerava escritor àquela altura, mas talvez ainda não seja realmente um escritor. A escritora é você. Escrever não é dominar as palavras, é ser dominado por elas. E você, que me mostrou Fernando Pessoa, Cecília Meireles e Cora Coralina, sempre foi mais dominada pelas palavras do que eu. Não era eu o poeta e você, a musa. Era você a poesia e eu a caneta das palavras que lhe dominavam. Você recebeu meu telegrama, minhas "felicidades"? Eu sei que felicidade não tem resposta, mas também não há felicidade sem resposta, sem comunicação. Eu não sabia disso à época do seu telegrama, nem do meu.

Quantas vezes me veio o pensamento de que só agora estou pronto pra você, de que se eu fosse então quem hoje eu sou, eu não teria estragado tudo. Não são os relacionamentos que não dão certo, é a gente que não está certo. Vai errando, errando... E, quando começa a acertar, a gente percebe que a sorte de principiante não serve pra quem não paga o bilhete. Você não foi, mas foi, a minha primeira namorada. Foi o meu primeiro amor. Foi os meus primeiros versos. Foi a minha primeira caminhada pelas madrugadas desertas, voltando pra casa depois que os ônibus já haviam se recolhido. Você foi minha primeira Ana de carne e osso, meu nome de estimação.

Hoje sei que você está casada e tem filhos. Sei onde você trabalha. Acompanho você feito um fã que segue um artista querido e incomunicável. Um fã que tem medo até de pedir um autógrafo. Eu já não moro mais na minúscula cidade, mas talvez o mundo um dia revele pra mim sua tão notável pequenez e você me apareça na frente, nem que seja para eu confirmar a minha culpa em seu olhar. Ou melhor que não. Que o seu olhar desfaça o meu medo infantil de ter sido ingrato com quem foi pra mim todo o bem que alguém pode ser para alguém.

Até lá, enquanto isso, vou errando e acertando, tentando largar o domínio das palavras e me deixando dominar por elas. Feito agora, quando olhei no calendário e vi que o domingo que é meu, de crônica, também é seu, de aniversário, e o coração deu um salto e os dedos começaram a fazer cócegas no teclado.

Engarrafo então essas palavras neste site e lanço ao mar da internet.

Comentários

Renata Silva disse…
é, você me fez ser tomada pelas suas palavras, simples e cheias de sentimentos. O que seria você agora sem esses encontros e desencontros da vida?
pois bem, me encantas.
albir disse…
Vou torcer para que o próximo comentário seja dela.
Se não for possível, que pelo menos ela continue lhe inspirando crônicas.
Abraço.
Grato, encantada Renata e solidário Albir. :)
Dessa vez você acertou e com muita maturidade.Como sempre lindooooo!
Teresa disse…
Tão lindo, tão verdadeiro, tão o que eu sinto também em relação a algumas pessoas... E o toque da garrafa no mar da internet foi muito bacana. Probabilidade de chegar ao destino, muito pequena. Mas a gente nunca sabe...
(Palpite intrometido: se sabe onde encontrá-la, por que não aparecer?)
Grato pela beleza do seu olhar, Pensamentos soltos.

Teresa, a gente nunca sabe. :)
Teresa disse…
Update: Quando escrevi este comentário, tinha mandado uma "mensagem na garrafa" para uma pessoa uns meses antes, meio que pedindo desculpas por uma falta de sensibilidade.
Pois bem, por que estou contando isso? Porque hoje recebi a notícia que esta pessoa faleceu. Se a mensagem tinha pouquíssimas chances de ser encontrada antes, agora tem zero chances.
Pelo contrário, Teresa, a comunicação no outro plano é ainda mais fácil. Pode ter certeza de que sua mensagem já foi lida e bem-recebida. :)
Teresa disse…
Muito gentil esse seu comentário, Eduardo, me fez sorrir.
Gostaria muito de poder acreditar nisso... Por via das dúvidas, da próxima vez que tiver algo a dizer a alguém, farei o esforço de dizer pessoalmente, para não sentir o que estou sentindo agora.

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