POLARÓIDES >> Leonardo Marona

“25 anos” (poema para ser escrito aos 70)

eu passava
leite de aveia
nos bagos
para que tudo
estivesse muito
limpo caso algo
de inesperado
acontecesse.

e raramente
algo inesperado
me acontecia.
mas quando
por algum acaso
acontecia algo
os bagos estavam
sempre sujos.

“atriz”

as palavras,
se elas saem doloridas,
é a tinta negra que sangra
as frases como feridas.

pouco me adiantam
as palavras floridas
que desabrocham no ar:
pétalas amorfas
no mofo do armário.

prefiro um dedo direito
e uma intenção sinistra.

quero de ti
a palavra comida.
quero as palavras
pelos poros da página,
pelo meio da tua virilha.

quero enfim,
segundos antes das cortinas,
escrever aquilo que te cala.

“Ana C.”

a poesia,
se insiste,
quando cisma,
(instinto?)
é um passo
na direção
do abismo,
(infinito?)
ou então são
dois passos
e um colapso
(suicídio?)
nos casos
de poesia
mais rara,
(primitiva?)
ou então coice,
patada de pena.
porque as asas
(comprimidos?)
estão na cabeça
e não nas pedras
portuguesas.

“Augusto dos Anjos”

queria ter nascido Augusto dos Anjos
para compreender a sífilis parnasiana
que se antepõe e rói os nossos ossos.
queria ter nascido anjo para compreender
os vermes na essência da idéia positiva.
talvez fosse preciso essa maldição,
esse querer talvez um dia ter sido,
para que eu pudesse pensar em Augusto
– tão augusto, pobre Augusto! –
como ramificação do sumo de uma raça
na crucificação irrevogável do que passa –
e ainda somos todos a mesma quimera.

“Camus”

se não haverá fatalmente
ninguém para contar a história
do fim do nosso mundo,
então surge a pergunta:
“por que motivo cultivá-la?”

“decartiano”

no escuro da noite
onde não há perdão
permanece o amor.

somos um pedaço
do que não restou
no escuro da noite.

onde não há perdão
somos um pedaço.

do que não restou
permanece o amor.

“casal pula da ponte em nome do amor proibido”

cobrei dos teus olhos o que
não cobraria da tua alma.
lá fora o vento deságua,
fraco como as memórias.
restam apostas ganhas
perdidas nos bolsos.
estamos sozinhos
agora que somos
a cor da junção.
e isso é tudo:
você e eu.
e lá fora
peixes
azuis.

“Bergman”

agora será o fim,
mesmo que momentâneo,
da cientificidade do sentimento,
de tudo que for felicidade e tristeza.

fomos homens por milênios
felizes e tristes, cal de um tempo surdo.
recorremos sempre aos mesmos temas:
corações subjugados, almas que sangram.
e por ternura não fomos além da redundância.

cabe a nós agora
a tarefa difícil de dar um fim
a todos os temas de felicidade e tristeza:
obrigado, consciência, já cumpriu seu dever.

cabe a nós talvez
o sacrifício da juventude que ainda rasteja,
talvez o envelhecimento precoce do espírito,
para sentir a leveza do contínuo-renovável.

cabe a nós, por fim,
dar fim aos precipícios e ritos de passagem,
aos improváveis suicídios, às ilhas de ópio,
para dar início aos temas, sem reticências.

"Chet Baker"

é um sopro
de soldado ferido.
desordenado, árido,
silencioso, firme.

é um sopro
que se refugia
no presídio oco
da dor desmedida
no parto do som.

não são mais notas,
são sobrancelhas verticais
voltadas ao vértice
de contusões permanentes.

pois de ti a pobreza parideira
do ínfimo da maior entrega brota,
e enfim podemos, anti-vivos, ser.

é sempre tarde lacrimosa sob o seco
fatigado de um estúdio em cor sépia
quando tua silhueta me rasga de ecos.

tua corneta aponta:
segue a cadência...

(apóio meu ouvido na tua desatenção,
que circunda a vida com reticências
atrás das agulhas iludidas do perdão,
em busca da raiz das conseqüências).

e tua música irrompe,
com a minha falência.

“Clint Eastwood”

importante esperar pelo último minuto,
pela dor inexplicável que nos fará jus
à cruz que carregamos, invisível ferro,
que gela nas artérias e antecipa o tiro.

importante esperar pelo momento vazio
em que a dor trespassa então por pouco
e já não é mais dor, é tensão do mundo,
enxergar sem rédeas o terreno aberto.

não se colocar entre este e aquele século.
seguir sem nome (pois o nome na pele)
então engolir os séculos, regurgitar mais.

para remexer o caldo fundo sob a terra
aparentemente árida, de cerne difícil,
e só então cuspir fora o sumo – dar o tiro.

“Kerouac”

teu erro foi me fazer pular etapas
para chegar mais cedo à tua velhice
e sentar tranqüilo – desesperado –
outro bêbado genioso na cadeira de balanço
alisando um gato exultante da própria beleza.

teu erro foi me dar tanta certeza,
tão falha quanto a bravura dos covardes,
de que as coisas podem dar certo,
se estiverem de um lado e nós do outro.

teu erro foi talvez o meu aborto,
a geração depois da geração seguinte,
o buraco negro na camada de ozônio,
a carga triste de um movimento abjeto.

teu erro, por fim, foi meu remédio.
porque se não sou o que pude ser,
pelo menos ficou uma certa brisa,
uma esquina que permanece aberta.

ficaram bares enfumaçados, e a ilha.
ficaram cigarros pela metade, e foices.
por fim, a magia pálida de um grito,
de um abraço, de um soco no estômago,
de um vulto secreto no olho da noite.

“Murilo Mendes”

sei que não sou “nós”,
e não somos por eras.

simples e livre, falo,
mas por mim gaguejam
sob olhares eunucos.

lendo-te a mente, pergunto:

vale a poesia que seja
explicação explícita?

"Nara Leão"

um cantinho, Nara Leão
pros teus dentes de pijama,
pra tua fama de proveta.
Nara triste, Nara alheia,
Nara vem, me dá tua mão.

tão só na capa do disco,
de gravata borboleta.
Nara linda, Nara feia,
Nara calma, descabelada.

se a vida não for mesmo nada,
Nara, que será da tua voz pequenina
quando o barquinho naufragar?

Nara rindo, Nara exausta,
o leão de Nara dormindo
sozinho na beira do mar.

“Otelo”

querer o que não se pode dar.
querer tudo, demais, para sempre.
depois nunca mais querer nada.

querer nunca como se melhor não ouvir a voz.
rejeitar o que nos espelha à superfície
dos olhos nas estátuas decapitadas.
almejar pureza, forçar pureza como virtude.
mas que vagos poros pontuam os corpos sonâmbulos?
que hora exata de sede é essa: de se olhar no espelho
ao fim de uma noite de prevaricações?

e logo depois a náusea de ter sede alguma.
ter o que não é possível denominar.
apropriar-se em sangue das ofensas emudecidas.
a compaixão por aceitar a própria indiferença.
o enterro da semente não plantada.

"Zé Ramalho"

roubando castanhas
de um pote vulgar
no que amanhecem
morangos na mesa
em dadaísmo tardio.

e o pano imundo
do fim da festa
lembra a frase
daquela música
e um pouco mais,
além e para o lado
misterioso do nosso
conhecimento: é tarde.

baby, nossa relação
acaba assim, assim...
conte para as amigas.

aquelas simpáticas,
aquelas prestativas,
aquelas ordinárias...

conte para as amigas
que tudo, tudo foi mal.

conte que no vão
entre novos sentidos
repousa eterna escuridão
como enxame violento
sob o couro das horas.

talvez que ainda antes
de sepultada a beleza
estivesse num sorriso
rasgado de silêncios.

novas palavras
como gárgulas
salivando rosas.

“felicidade”

passo por ela,
ela olha para mim,
eu olho para ela,
ela olha para mim.

não nos conhecemos e
isso não nos importa.

por uma vez sorrimos
e seguimos em frente.

a alma ganha trégua
por uma vez mais.

“que tipo você faz?”

todos fazemos tipos.
eu faço o tipo indefeso
ou o tipo Woody Allen.
adoro o tipo Woody Allen.

sei que as mulheres gostam.
depois que descobri isso
me concentrei no tipo Woody Allen.

às vezes faço tipo Hemingway.
o problema do tipo Hemingway:
não é muito bom com as mulheres.
mas é ótimo com animais selvagens.
bem, algumas mulheres...

“o primeiro homem foi uma mulher”

só podia mesmo
se chamar
Safo
a poeta grega
cantora do amor
lírico
entre as fêmeas
na ilha grega de
Lesbos.

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