LAVA >> Leonardo Marona

Barulho demais lá fora e tenho só essa boca banguela, essa vontade seca de sugar todas as etapas, esse medo terrível do apodrecimento das possibilidades. E esse cansaço. Os transtornos que as calçadas em dias de sol tremulante emanam me deixam aéreo. A paisagem se sobrepõe, e eu me dissolvo totalmente. Mas tenho medo. O medo não é matéria como o corpo. O medo é forma, existe antes das coisas. Por isso tenho medo. Medo é o ter. Mas e com relação às perguntas impossíveis? O que fazer com elas? Deixar de pensar? Guardá-las feito pergaminho? Mergulhar com vontade em tudo, como aconselhou certa escritora tetraplégica? O ícone de uma geração? O exemplo da conexão plena entre os elementos? O risco sem curva no céu estrelado? Existe, mas existir não é bem o verbo. Os verbos não são bem verbos, se usados como escudo. É o que fazemos. Usamos verbos como escudos, como abreviações de poder maquiavélico. Usamos os verbos sorrindo, com a boca sangrando. Mas, ouvindo agora a música barroca, vejo como lentamente bufa entre nós um ser ferido, se arrasta com classe o verbo, sua linha tênue entre sangue e lápide, tão perfeita quanto a fumaça do cigarro. Sua essência, essência dos filhos fortes. Porque não importa se o Homem criou o verbo. A ressonância do verbo saindo da boca do Homem e o efeito que ela provoca no ar, por mais que seja às vezes desequilibrado para o Homem, como podemos notar ao comprar o leite, isso nada tem a ver com o Homem. Tem mais relação com a fumaça do cigarro do que com o homem. Vejam! O homem se tornou minúsculo. E isso também não fui eu que fiz. Estava nalgum canto e eu o recolhi com descuido. Recolhi o “isso”. E eu repeti a ele as mesmas palavras: “morre assim, bem devagarinho”. E o que não dizemos um ao outro, quando nossas costas se encostam debaixo das cobertas? A música barroca... Talvez mais próxima da fumaça que nosso verbo quadrado, nosso verbo de aço, nosso verbo dia-a-dia. Por algum motivo estou vazio e sinto que posso continuar mais um pouco. Ninguém se importaria agora. Vejamos o que acontece se eu tentar. Um minuto ou dois para se tentar fechar os olhos, não esses, os outros, sim, os que olham dentro, ponha a mão, aí mesmo que eles ficam, agora os feche, agracie o próprio peito, não, não precisa ser com força, não deve chorar agora, a coisa chora por dentro de si, somos apenas mecanismo agora, sim, recoste o pescoço sobre o ombro, sim, sinta devagar o carinho da absolvição, a música barroca, obrigado Sr. Telemann, sinta quente esse ombro que tantas vezes suportou o peso vago do mundo, a acústica ressonante que nos traga como esgoto, suporte agora com leveza o mesmo ombro encharcado de tantas asfixias, traga para si toda a carga, amacie os pulmões delicadamente, como quem morre devagar, mas bem devagarinho mesmo, sem abrir os olhos, os olhos de dentro que eu digo, a força muda reticente do mundo sem invenção, do negro desconhecido que absorve o claro e cria as cores, não mergulhemos com violência, apenas repousemos o colo, e somos apenas fluido eterno agora, todos nós, que chegamos até o fim sem saber, e somos lava.

Comentários

Anônimo disse…
Leonardo, com sua crônica, eu conjuguei o verbo embrenhar e fui até às profundezas d'alma.

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