CIDADE ENCANTADA [Debora Bottcher]


Do alto de uma montanha, na varanda do chalé de madeira, eles olhavam a cidade imersa no vale. Sorriram, encapuzados até o pescoço por conta do frio. Fazia algum tempo tinham ido viver ali. Lá embaixo, os movimentos do vilarejo revelavam uma manhã de sábado acolhedora embora a temperatura permanecesse baixa.

A vida por ali é tranqüila. O lugar está sempre repleto de viajantes, pessoas que vêm quase sempre sem a menor intenção de ficar.

Casas de chocolates, perfumes, vinhos e especiarias figuram o cartão de visitas para receber esses que perambulavam pelas ruas estreitas, de pedras, cercadas pelo vento cortante.

Rodeada de montes, chamaram-na Monte Verde e ela se fez verde de verdade: verde de esperança, de chegadas, partidas, idas e voltas intermináveis em busca de origens, mistérios, sonhos, carinhos. Alguns encontram o que desejam: somente esses criam raízes.

Por todos os espaços, fornalhas são expostas alimentadas pela lenha seca que aquece os ossos e as almas. Dizem que fantasmas caminham pelas alamedas na noite escura. Que o lugar é envolvido por criaturas errantes e perdidas que ali viveram suas chagas, dores e mágoas. Contam que o frio que percorre cada canto vem de uma legião de mortos que habita todos os poros. Pelas fendas de suas vestes negras eles observam os transeuntes e lhe impõem a sensação gelada do abismo.

Contudo, o que realmente se observa são pessoas envolvidas pela magia e receptividade de um povo tão turista quanto esses de passagem. Tudo ali é um pouco irreal, parecendo-se com uma cidade de bonecas criada por mãos afoitas e infantis na ânsia de brincar sentindo-se “gente grande”, governantes supremos, reis sem fronteiras...

Quem para ali se dirige vem em busca do aconchego e de uma paz repleta de carícias. O sorriso ostentado em rostos pálidos pela geleira de um inverno intenso acolhe os corações frígidos vindos de cidades distantes.

Não há luxo. Pelo vale inteiro, vê-se cabanas de madeira mogna, rústicas e aquecidas, camas encerradas em colchas de retalhos, tapetes antigos, pequenos quadros com fotos da paisagem nata, lareiras constantemente acesas.

Das frestas das janelas - que quase sempre estão fechadas -, pode-se ver a névoa que cobre o lugar nas manhãs claras que mesmo com sol a pino continuam frias.

Não é difícil estabelecer certa cumplicidade com o local. Soberana em sua tranqüilidade mansa, os viajantes se deliciam com a terra vermelha, a mata virgem e densa, o ruído silencioso das vozes baixas, a brisa gelada que convida ao abrigo humano. Caminham por entre as árvores que formam uma serra, trilhas feitas por seus próprios rastros em círculos que levam sempre ao ponto de partida. Chegar e partir sempre do mesmo lugar. Não há como se perder, exceto quando se embrenham dentro de si mesmos querendo descobrir o segredo que as estradas contém.

Sem praças ou coretos, na entrada divisa-se apenas um lago farto de garças. Essa é a natureza animal à vista. A restante, esconde-se no meio da floresta à espreita, à espera, à caça sem oferecer perigo.

Para se alcançar esse paraíso envolto em sombras e mágicas, um único acesso de solo batido que cruza alguma rodovia tumultuada. Muitos chegam até ali alheios do rumo que haviam definido. Outros, por indicação desses primeiros. Alguns, em busca de se encontrarem.

Esse era o caso de Ninna e Marco. Partiram de suas cidades e descobriram-se ali. Permaneceram no lugar e na vida um do outro. Agora, compartilhavam do amor e de algo que se misturava com o campo verde, os fantasmas da noite, as lareiras quentes, os silêncios das vozes, a cumplicidade do compartilhar...

Do chalé de madeira no alto da montanha, mais do que observar o deslizar calmo de uma forte corrente de elos que se interligam, eles podiam sentir a felicidade passeando nas ruas de pedras, nos perfumes suaves, nos sonhos mais doces que os doces que eram vendidos nas charmosas casas de chocolate do mundo todo...

Imagens: Trailing Pear on an Austrian Chalet, Adam Woolfitt; La Clusaz, Rhone Alpes, France, Hekimian Julien; Young Couple Drinking Hot Chocolate, Tim Pannell

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Comentários

Debora, seu texto me fez lembrar da minha dificuldade em ler (e visualizar) descrições.

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