QUANDO DESCANSARÁ ISABELLA? [Maria Rita Lemos]


Fiquei sabendo, como quase todo mundo ficou, da morte de Isabella, a criança que foi jogada do sexto andar de um prédio em São Paulo. Ou não foi jogada, foi “desovada”? Ninguém sabe, e quem sabe não diz. São apenas suposições. O que se sabe é que havia sangue em vários lugares, e que Isabella apresentava marcas típicas de quem foi machucada, antes de ser jogada ou “desovada”.

Fiquei pensando em como alguém pode pegar uma criança de apenas 5 anos, maltratar, asfixiar e depois atirar pela janela do apartamento. Nem sendo psicóloga, que tem por mister estudar o comportamento humano, nem assim fica fácil entender essa
crueldade. O que dói muito é saber quanta gente está ganhando dinheiro e/ou prestígio com essa tragédia, desde a mídia em geral até as mães das amiguinhas de Isabella, que nunca pensaram que estariam na TV, dando entrevista... a professora, os vizinhos, o porteiro do prédio, de repente todo mundo tem algo para dizer sobre a menina, tanta gente sabe alguma coisa, ou não sabe de nada, mas assim mesmo aparece na grande mídia. E Isabella não ganha cachê algum por isso. Talvez, e isso é só uma parte do mistério, não consiga nem mesmo descansar em paz.

Não estamos nesse mundo para julgar ninguém, nem apontar dedos acusadores para quem quer que seja, mas as dúvidas persistem: se não tinham, de fato, nada contra quem estava preso, por que estavam detidos o pai e a madrasta de Isabella? Se o delegado tem que prender, e por isso é delegado, e por isso essas duas personagens importantes na vida da menina foram presas, por que não foram presos os que compraram tapioca com cartão coorporativo, por isso, em última análise, com dinheiro público? Ah, sim, porque é diferente de matar. Políticos são diferentes dos demais seres humanos, e podem, talvez, matar a esperança do pobre povo brasileiro sem que nada lhes aconteça, é a mensagem que nos passa.

Não estou, com isso, tentando dizer que o pai de Isabella fez essa barbaridade, ou sua madrasta, ou algum desafeto seu ou do seu avô... longe de mim julgar, já por isso declinei, há muitos anos, convites que me foram feitos para ser jurada. Estava apenas pensando alto, intoxicada que fui, todos esses dias, com tantas notícias sobre Isabella - bastava ligar a TV ou abrir um jornal e lá estava ela, sorrindo sempre, dentinhos ainda de leite, talvez, sem ao menos suspeitar que seria atriz, pouco tempo depois, de uma tragédia macabra, cujos personagens são apenas presumidos.

Fiquei pensando em quantas Isabellas existirão, atiradas pela janela, abandonadas em cestos de lixo, jogadas em represas, Isabellas ou Joões, nesse mundão de meu Deus, ou aqui, mesmo, pertinho, nesse nosso Brasil, tão querido quanto sofrido.

Dias antes do caso Isabella, vimos nas mesmas TVs a menina de 12 anos, de Goiânia, encontrada presa e torturada barbaramente pela “tia” Sílvia, que já fizera o mesmo com cinco crianças, anteriormente. Apenas uma delas teve coragem de denunciar ao
fato à mãe biológica, que não acreditou, achando que sua filha estava inventando tudo. Agora, mamãe, agora que sua filha esteja, talvez, descrente de toda a humanidade, pois quem ela mais confiava não acreditou nela, agora você acredita que era verdade? Pois é, mamãe, era verdade. Sua filhinha foi torturada, como Isabella foi morta, e não teve ainda tempo de descansar.

O padre apareceu na missa de sétimo dia, mais de oitocentas pessoas que estavam na igreja também, o promotor apareceu, o juiz, os advogados, a madrasta, o pai, a mãe biológica. Vendeu-se muito jornal por conta disto, os anunciantes correram, repórteres correram também, porque afinal o pão deles é o nosso circo, ainda que trágico, horrível, impensável. A verdade é que, infelizmente, nossos monstros moram entre nós, estão no meio de nós. Muitas vezes dentro de nossa casa.

No frigir dos ovos, quem vai sentir a falta de Isabella, mesmo depois que a notícia já não for notícia, são aqueles que verdadeiramente a amavam, e não apenas fizeram manchetes de sua tragédia ou choraram em sua missa. Só nesses corações a menina deixará um vazio, porque, para o resto de nós, será apenas mais uma, engrossando as estatísticas.

O que eu realmente espero é que Isabella descanse em paz. E ela não descansará enquanto for manchete de jornais. Ela não descansará enquanto houver outras crianças esperando, nos beirais das janelas, nas margens dos riachos e lagos, aguardando que se faça alguma coisa por essa gente insana, chamados de monstros, mas que podia muito bem ser um de nós, chamados sadios. O que Isabella espera, o que esperamos, é que as razões que levam a gestos desse tipo, trágicos e fatais, sejam exterminadas.

Que os monstros que habitam entre nós morram de fome, porque não serão mais alimentados pelo ódio e pelo descontrole, crônico ou agudo. Enquanto houver uma única
criança espancada, enquanto houver gestos de covardia, motivados por gente doente, de dor, de sofrimento, de miséria, de desesperança, de ódio, outras Isabellas estarão à espera do vazio e da morte. Que vença o bem, ainda que tarde. E que
Isabella descanse em paz.

Imagem: Revista Veja, Edição de 16 de Abril de 2008

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