CREPÚSCULO >> Sergio Geia

 


Quase noite. 
 
Céu de meio-tom, essa ambiguidade que Ricardo quis mostrar a Raquel em Venha ver o pôr do sol. De um lado, quase escuridão, nuvenzinhas soltas aqui, outras lá. Do outro, um restinho de sol, o lilás, o laranja, as cores se misturam. 
 
Eu podia ver o mar, e não é que vejo? O creme da arrebentação — igual colarinho de chope. As pequenas ondas, uma a uma, beijando os pés da menina; ela me sorri. Ondas que vêm, ondas que vão, ouço Chico cantando. Está quente. O vento venta, e tem cheiro de sal. 
 
Brinco o jogo mais um pouco, me faz tão bem. 
 
A menina entra e sai da água, o sorriso banguela é doce. Atenta à engenharia da construção, aos detalhes, o castelo crescendo sob seus olhos — mais tarde irá sucumbir, como sucumbem os castelos de areia. Depois, tapando o nariz, a cabeça no mar, como o tempo passa! Levanta-se, olhares gulosos ao redor. Sempre íntegra, senhora de si, recomposta para tantos recomeços. 
 
Não todos... 
 
Meu devaneio dura pouco. Sou desperto por um rugido de motor de caminhão que machuca o peito; doente, ele regurgita fumaças do pulmão e outras coisas insólitas. 
 
O mar verde está cheio de telhados, é branco e cinza e sólido, tem aroma de veneno. 
 
Fecho a porta. 
 
Vou preparar o jantar. 
 
 
P.S. 1. Esse conto foi finalista do Prêmio Off Flip 2025, e está no livro do Prêmio. Acesso gratuito ao ebook no site da editora. 2. Ilustração: Pixabay

Comentários

Allyne disse…
Preciso e delicado. Gostei, Sérgio.
Albir disse…
A poluição sempre nos arranca do devaneio.
Jander Minesso disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse…
Que machadada no meio do sossego. Bela construção (feia, mas bela).

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