PONTO DE LUZ >>> Nádia Coldebella


Quando Ana era criança, a solidão a assustava.

Ela pedia para a mamãe deixar a luz do quarto acesa ou sempre tentava ficar perto de alguém, mesmo que, para isso, precisasse inventar uma desculpa qualquer para não dormir.

- Vai dormir, menina - dizia a mamãe depois da oração. E a escuridão tomava conta da casa.

Algumas vezes, ela tentava permanecer acordada. Tinha medo de que, durante a noite, seus pais morressem, que algum monstro os levasse e então ela ficaria realmente sozinha. E, sem saber como, em algum momento, adormecia.

A história começa assim e poderia acabar assim, mas, à medida que Ana crescia, crescia nela também a impressão de que todos os adultos circundantes viviam em um estado de coma, de ignorância absoluta a respeito das verdades deste mundo.

Na adolescência, porém, Ana teve o desprazer de entrar em coma. Durou 12 horas. Esse coma não teve graça nenhuma, nem cor, nem lembrança, nem memória. Ela também não viu luz branca no fim de um túnel, não foi cercada por parentes e amigos queridos, nem se viu fora do corpo. Nada disso. Foi um estado de total catalepsia, cega, surda e muda. Magicamente, alguém apagou a luz e, quando acendeu, segundos depois, ela estava em outro lugar. Sua mente procurava preencher o vácuo deixado pelo tempo, encontrar alguma ligação entre um estado e outro, mas era só a luz apagada.

Anos depois, já adulta, ela ainda tinha, algumas vezes, a sensação de que continuava deitada naquela maca. Ela não tinha acordado. Nada ao seu redor era real. A vida que vivia nunca aconteceu. E esse mundo esquizofrênico, cindido e imerso em delírios que a rodeava era produto de uma mente adolescente alcoolizada.

– Posso acordar agora? – perguntou Ana, um dia, em frente ao espelho.

Ela abriria os olhos e perceberia que estava de volta ao seu corpo. Estivera fora, com a consciência vagando por uma espécie de limbo, umbral ou purgatório – compreenderia que aquilo fora um artifício do seu cérebro para mantê-la viva (ou alguma magia ancestral que, se aproveitando do seu recolhimento, lhe apresentara uma versão alternativa da vida). Ela veria que o mundo real é um lugar muito interessante.

– Pronto, estou viva agora. E posso escolher. Sou livre.

Não é bem assim, ela sabe. Ela não abriu os olhos. Estava lúcida e acordada. Ela sabe também que é exatamente assim: seus olhos estão vendados e ela espera por algum toque, uma luz que se acenda, um novo mundo que se revele, uma esperança, uma força que a tire desse transe e mostre coisas incríveis que ela desconhece.

É que, naquela semana, ela acordou com um grande aperto no peito.

– Monstro-solidão, você de novo?

Mamãe não podia mais acender a luz para ela. E ela não podia mais inventar uma desculpa para não dormir.

- Ana, você não é mais criança.


Comentários

Zoraya Cesar disse…
Que angústia, meu Deus! Ter a consciência do nosso estado, saber q o monstro tem nome, saber da escuridão, tudo isso é muito assustador. Ana tinha razão, a maior parte dos adultos nao tem essa consciência, e vivem livres. Não dizem que a ignorãncia (inconsciência) é uma benção? Me deu um aperto no coração, será q a mãe ainda estava viva? Caramba. Vou ter de reler.
Jander Minesso disse…
É curioso como você consegue escrever textos leves, quase debochados, ao mesmo tempo em que entrega uns tijolões densos e sufocantes como este aqui. A Zoraya disse bem quando falou em angústia. Me deixou sem ar.
Anônimo disse…
Ufa, comecei o texto pensando no meu filho e logo ele saiu de um medo corriqueiro da infância para algo bem mais intenso e angustiante. Gostei como você disse que Ana sentia que nunca tinha saído do coma. Acredito que às vezes a gente fica mesmo, preso em um lugar, situação do passado. Achei incrível como você conseguiu transmitir algo tão impalpável, passar uma sensação, um incômodo, sem entregar tudo de forma muito explícita. Parabéns!
Alfonsina disse…
Aqui foi a Amanda comentando 😅
Ana Raja disse…
Que lindo, Nádia! Quanta delicadeza ao escrever os nossos avessos.
Soraya Jordão disse…
Amei. Me reencontrei com meus medos e meus velhos aconchegos.
Albir disse…
Que beleza, Nádia!!!
A perda das mães e dos mitos aumentam a solidão, o medo e o desamparo.

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