GREGÓRIO >> JANDER MINESSO

 

Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregório Sousa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num homem monstruoso. Tentou mexer as patas, apenas para descobrir que quatro delas tinham sumido e as outras tinham virado dois braços e duas pernas. Para piorar, em um dos braços havia uma pulseira magnética daquelas que equilibram a energia.

Num movimento estranho, porém fácil em seu novo corpo, Gregório pôs-se sentado na cama. Olhou-se no espelho: era mesmo um homem. Suas anteninhas também tinham desaparecido. E ainda tinha lentes de contato dentais. Enquanto tentava decifrar aquele enigma visual, Sousa sentiu um reverberar grave na cabeceira da cama. Achou o celular debaixo do travesseiro, bombando com mensagens no grupo da firma.

“O debrief com os feats do rebrand só vem na sexta. O Greg vai ter que trabalhar no fim de semana.”

“Não esqueçam que o meeting sobre o brainstorm com os assets do cliente é hoje ao meio-dia.”

“Votem na Aninha para o Caboré.”

Fechou o Zap e deu de cara com o relógio na tela: onze e meia. Apenas trinta minutos para o meeting sobre o brainstorm com os assets do cliente. Quando deu por si, já estava de banho tomado, atrás do volante de seu Jeep Renegade prata. Mas a Joaquim Floriano estava travada. A Juscelino, pior ainda. E a Faria Lima tinha duas faixas bloqueadas por conta da meia maratona que aconteceria dali a dois dias. Nove minutos para o meeting.

Gregório largou o carro no estacionamento do subsolo e esmurrou o botão do elevador, que estava no vigésimo primeiro andar. Chegou na sala de reunião três minutos atrasado, pingando, mas encontrou o lugar vazio. Não havia vivalma na agência além da Stéfani na recepção.

– Sexta é home office, né?

O celular no seu bolso resmungou duas vezes.

“Caiu o meeting.”

“Greg: a gente precisa do debrief pra segunda no primeiro horário.”

Sousa respirou fundo e decidiu que merecia um almocinho no Pirajá. Ficou quarenta e cinco minutos na fila de espera. Pediu um frango à parmegiana com arroz branco e batata frita. Veio purê. Oitenta reais com a taxa de serviço, que ele pagou a contragosto. No caminho de volta para o carro, viu uma barata dançando no calor da calçada vespertina. Esmagou o bicho debaixo de seu sapatênis Reserva.

A volta para casa era uma sequência de asfalto remendado, viaturas da CET e gente distribuindo santinhos de vereadores nos semáforos. A Rebouças estava em reforma e o tempo previsto no engarrafamento era de trinta minutos, segundo o Waze. Decidiu encostar no beach tennis para ver se o trânsito amenizava. Quis o destino que o instrutor mais chato do lugar já estivesse esperando por Greg. Seu mau hálito dava até vertigem.

– Bora treinar aquele backhand?

Cento e oitenta e duas rebatidas depois, sentou na lanchonete contígua à quadra e pediu um açaizinho com banana. Não tinha banana. Morango, então. Também não tinha. Só o açaí com granola e pronto. O creme veio duro e os cristais de gelo cortavam a língua, mas o publicitário devorou a cuia até o final. Quarenta reais e lá vai fumaça.

Sentou atrás do volante de novo e abriu o Waze. Quarenta minutos de engarrafamento, por conta da manifestação dos metroviários na Paulista. Não era contra os metroviários; tinha até morado na Estação Vergueiro quando ainda era um inseto, ou pelo menos achava que tinha. A memória virara um borrão na sua mente. O devaneio pelo passado foi cortado por um som de metal se retorcendo em algum lugar do painel do carro: foi o último grito do ar condicionado antes de pifar. Ele mal tinha entrado na avenida e o trânsito piorava. Um guardinha da CET com óculos de sol espelhados desviava o trânsito para a Alameda Santos. Gregório fez menção de seguir reto e o guardinha colocou a mão sobre o capô do Renegade prata.

— Santos direto, amigão. A Paulista só tá liberada depois da Brigadeiro.

O sangue de Gregório ferveu. Talvez fossem os óculos espelhados, os cristais de gelo no açaí, a taxa de serviço no Pira, ou um pouco de tudo. Algo dentro dele trincou. Sousa deu um toque para baixo no câmbio, colocando-o em modo esportivo, e afundou o pé no acelerador. O carro virou um touro bravo, com os pneus gritando e a traseira escapando de lado. Greg mirou no guardinha da CET e fechou os olhos. Por um instante, o mundo entrou num liquidificador. Ouviu um baque surdo, depois uma onda de vozes, depois mais nada. A porta do carro se abriu. Algo o arrancou do Renegade pelo colarinho e ele sentiu o calor do chão sob si.

– Filho da puta!

– Pega ele!

A essa altura, Gregório Sousa — o homem — já não estava bem ali. Pensava na Estação Vergueiro. Lá longe, sentiu um chute arrancar alguns de seus dentes. A cabeça quicou no asfalto e o que já era difuso escureceu de vez. Sentiu o ar mais denso de vozes. Um golpe nas costas, um pisão na têmpora, um osso partido. Lembrou do inseto sob a sola do seu sapatênis Reserva. Sorriu. Levou mais um pisão na boca entreaberta.

Imagem: Pixabay
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Comentários

Nadia Coldebella disse…
Putz, e sou eu q entrego tijolão? Vc começa com um Kafka só contrário e já de cara vem o estranhamento. Aí a personagem transita pela realidade humana muito bem adaptada, parece, e é disso que vem o segundo estranhamento. Engraçado q no leitor, a realidade humana não dá estranhamento nenhum, só um pouco de raiva. Deve ser por conta da habituação. Mas, o homem inseto não dá conta e sofre até a explosão... ou seria um surto? Não sei, mas esse texto estranho é pra lá de bom!
Nadia Coldebella disse…
Em tempo, eu li o texto todo pensando nele como um besouro (não me pergunte!), mas...ele era originalmente uma barata, né? Quer dizer q praticou fraticídio? Ah, foi daí veio a culpa imensa q preparou terreno pro surto e pra um possível assassinato. Era a
auto punição! Bem-vindo a Fraternidade da Pá, coleguinha!
Ana Raja disse…
Que baita texto! Adorei a pitada do Kafka, muito bem trabalhado. E a sua descrição da vida humana foi agoniante.
Mário Baggio disse…
Sempre penso em como uma barata se sentiria se, um dia, acordasse transformada em ser humano. Acho que ela desejaria voltar a ser barata, mesmo sabendo do que os humanos são capazes de fazer com uma barata.
Zoraya Cesar disse…
Que texto, Jander! Qtas leituras! Desde a mais superficial ( o Kafka invertido) até onde o céu for o limite. Somos todos umas baratas, esmagadas pelo cotidiano burro do qual até poderíamos escapar, mas nao escapamos, como se presos pela tal maldita pulseira. Seguimos o cotidiano (o mesmo açaí, as mesmas rotas, as mesmas escolhas) vivendo no automático e achamos q é assim mesmo, q está tudo bem e, de repente, as menores das coisas se juntam e... voltamos à animalidade bestial. Ainda tô digerindo o final feliz (pra ele, claro) de Gregório, se ele, de repente, não se ofereceu em sacrifício para que toda aquela gente tb pudesse explodir e fazer uma catarse em cima dele. Conto de horror tenso.
Francisco disse…
Gostei da inversão de uma barata para um homem monstruoso! Sim, quem de fato é monstruoso? Nós somos, pobres baratas apenas existindo. Amei!
Uau, que texto, nem sou muito o que dizer... como disse a Nadia, começa um um Kakfa invertido e de repente o homem Barata está agindo no seu mundo humano. às vezes eu passo o dia sob a impressão de um sonho, bom ou ruim. Senti um pouco assim a lembrança de ser barata deste homem. E depois todos os outros níveis do texto, a bestialidade de nossos cotidianos, o "burn out", a redenção através da violência que o faz retornar ao estado de barata, ainda que esmagada... num registro mais leve, lembrei do ultimo "meu malvado favorito", em que o malvado inimigo adora as baratas e se transforma numa delas para ter superpoderes, você assistiu?
Soraya Jordão disse…
O melhor de tudo é o desespero que fica em se reconhecer no texto e ao mesmo tempo desejar ardentemente uma saída, um outro final.
Albir disse…
Desconfio que ele era mais feliz como barata!

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