OBSTÁCULOS >> André Ferrer
Eram nove horas da manhã quando Emília entrou na sala de espera. Os pacientes aguardavam ao redor da mesa cheia de revistas e nenhum deles parecia presente. Pescoços caídos. Aqueles olhos mergulhados nas telas dos smartphones. Todos absortos.
Emília chegou ao balcão. A secretária do consultório também parecia um invólucro sem alma. Fora abduzida por um tutorial de maquiagem alguns minutos atrás.
— Oh! — disse a mulher finalmente. — Senhora Emília, bom dia. Quase na hora! Sua consulta é às nove e quinze.
Emília concordou. Depois, retirou o dinheiro da bolsa e ofereceu à secretária, que agradeceu.
— É só aguardar senhora Emília. Eu já chamo.
Sentada na frente da mesa das revistas, Emília abraçou a bolsa e ficou imóvel por alguns minutos. Ela girou a cabeça. Olhou para o círculo entorpecido e reconheceu o mesmo reflexo azul nos olhos das pessoas de pescoço quebrado. Emília sabia o que cada uma fazia.
A moça que usava bandana, o rapaz orelhudo, o senhor dos pés inquietos. Cada qual com o seu interesse ou fixação na telinha. Uma velhota — ainda mais arqueada do que os outros — tinha um tentáculo no lugar do indicador. Usava fones, mas Emília podia ouvir a canção que embalava imagens hipnotizantes e descartáveis. Bastava analisar o semblante da pessoa para descobrir se o vídeo que assistia era interessante ou estava prestes a ser substituído num único toque. Emília conhecia muito bem aquilo. Então, ela respirou fundo e apanhou uma das revistas que era de 2010. Pegou outra que era de 2015. Eram todas antigas. Há muito, a mesa de revistas não recebia novos exemplares. O interesse por revistas parecia ter ficado para trás.
Depois de alguns minutos, o médico chamou e eles conversaram sobre a enxaqueca noturna. Emília considerava que era culpa do medicamento da ansiedade, mas o doutor refutou.
— Quanto tempo a senhora tem olhado para uma tela?
— Apenas o suficiente.
— É mesmo?
— Sigo à risca o meu jejum de redes sociais.
— Continue assim. É importante que a senhora fique longe desse tipo de estresse. Ansiedade e redes sociais são uma verdadeira bomba. E a dor no pescoço?
— Não sinto mais. O que me incomoda é essa dor de cabeça. Quando anoitece, ela começa.
— Vou prescrever ergotamina.
— Tudo bem.
— Vai funcionar.
— Eu espero.
10:34
Emília entrou no açougue e encontrou o sorriso um tanto apreensivo do jovem açougueiro. Nunca dois quilos de costelinha estiveram tão distantes da serra e da sacola. Ela precisou aguardar pacientemente que uma ninhada de gatinhos atravessasse a rua em segurança. Gatinhos ou patinhos. Dava no mesmo. Emília não via, mas sabia do que se tratava. Só depois de um sorriso aliviado, o rapaz olhou para a mulher.
— O que vai ser? — perguntou.
15:40
Ela entrou numa loja que estava deserta e começou a procurar uma vendedora. Quando encontrou, aproximou-se e sorriu completamente ignorada. Também já dizia algo. Balbuciava, na verdade, que precisava de um sutiã confortável da marca tal, do tamanho tal, da cor da pele, mas a moça custava a dar atenção. O vídeo que ela assistia no celular parecia interminável e consistia numa série de cenas em que as pessoas caíam no chão. A música de comédia sempre terminava num efeito sonoro circense e Emília sabia quando alguém caia na tela da absorta vendedora. Não conseguia ver, mas sabia.
17:25
Emília chegou ao prédio onde morava e se deu conta de que a chave estava no sumidouro, que era a sua bolsa. Pensou em contar com a gentileza do porteiro e acenou para ele através do vidro. Depois, tocou insistentemente a campainha. Estava certa de que ele já tinha reconhecido. Por que diabos não abria a porta?
— O que houve? Sou eu. Emília do 301.
— Ah! Senhora, eu estou tentando aprender algo aqui.
— É mesmo?
— Finança agressiva.
Ah, o coach!, pensou Emília. Não podia ver, mas tinha certeza. O coach é uma evolução natural do vendedor de filtros Europa. Uma linhagem, realmente, que parte do calvo de bigode — suor latejante, caneta Parker no bolso da camisa xadrez, uma fixação pelas palavras “a gente podemos” — e chega ao pseudo-acadêmico do YouTube de hoje: nosso velho conhecido.
Emília forçou um sorriso para o porteiro (futuro milionário) e entrou no elevador.
23:30
As costas dele estavam voltadas para ela. Emília sabia do que se tratava. Então, o marido riu baixinho enquanto uma luz azul vibrante bruxuleou na parede do quarto. Durante uma pausa, ele perguntou: — Você está com dor de cabeça hoje também?
— Estou.
— Não tem problema meu amor.
Imediatamente, ele alcançou os fones de ouvido, retornou à posição e riu num tom sussurrante.
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