A CURA - final >> Albir José Inácio da Silva
(Continuação de 16/09/2024 – Humilhado pelo medo do sobrenatural,
Lênio resolve curar-se. Não gosta de terapeutas, mas, estimulado pelo coach, resolve
enfrentar sozinho e escrever sobre coisas assustadoras, em vez de fugir delas
como fez a vida toda. Decide visitar uma casa mal assombrada no bairro, mas,
quando sai à noite, a rua fica às escuras. A natureza parece conspirar contra
sua cura, mas ele não vai recuar)
Quando a iluminação da rua se apagou, ele pensou em desistir,
pelo menos adiar, mas decidiu que era só coincidência e continuou pisando
forte. Já perto da casa maldita, um relâmpago iluminou a rua deserta, e ele
viu.
Uma bruxa de cabelos brancos esvoaçantes flutuava a meio
metro do chão, com um vestido que ia até onde seriam as canelas, mas sem
pernas. Ele sentiu um desmaio, mas a
rigidez do corpo o impediu de cair. Ouvia o coração metralhar.
No relâmpago seguinte, a coisa estava a dois passos.
- Boa noite, Seu Lênio! Que tempo, hein! - era Dona Belmira, que
tinha pernas, mas usava meias e sapatos pretos, e segurava um lenço branco na
cabeça para proteger seus ouvidos inflamados.
Ele não conseguiu responder. “O que essa velha está fazendo
aqui uma hora dessas?” Levou alguns minutos até que respiração e coração se acalmassem.
Mas uma velha desocupada não o afastaria de sua cura!
O mato, que tinha mais de um metro, estava amassado em
direção à porta. Do hall de entrada, ele ouviu barulho de tábuas rangendo, mas achou
que era o vento passando pelas frestas nas paredes. Buracos no teto deixavam
entrar raios da lua.
Prendeu a respiração quando ouviu gemidos de mulher, mas não
se intimidou, gatos no cio, pensou. Agora gemidos de homem, não eram gatos. Ficou
paralisado. Parecia uma sessão de tortura. Lembrou-se do casal encontrado em
pedaços sobre a mesa. Quis correr, mas as pernas não obedeceram. Os rangidos
aumentaram, os gemidos eram já quase gritos.
Lênio pisou na ponta de uma ripa, que subiu e desceu com
estrondo. Silêncio. As tábuas pararam, os gemidos emudeceram. Ouviam-se os
grilos lá fora.
Um sem-teto surgiu num facho de luz da lua com uma nudez
ameaçadora e concreta, o medo já não era sobrenatural. Uma sem-teto apareceu
atrás do companheiro, vestindo apenas um pano na cabeça e uma faca na mão esquerda. Reunindo as últimas
forças, Lênio correu de volta para a rua.
Caía uma chuva fina, trovões e relâmpagos espocavam, e ele ofegava.
A luz da rua voltou, e as pessoas buscavam proteger-se sob as marquises. Mas
não o Lênio. Olharam assustados quando ele parou embaixo do jato de uma calha no
prédio da esquina. Queria esfriar a cabeça, e disfarçar as calças molhadas, antes
de entrar em casa.
Frustrada por hoje a tentativa de incursionar pelo
sobrenatural. Nada de fantástico ainda para escrever - como sugeriu a bela e
enigmática terapeuta. O mundo real lhe pregara peças.
Mas não desistiu, precisa tomar posse da sua cura, como diz o
coach. Amanhã vai ao cemitério.
Comentários
Tô rindo muito aqui com o esforço dele em disfarçar a calça molhada e a cabeça quente.
Kkkk! Acabei de lembrar aqui que conheço um ser humano que se auto intitula materialista, agnóstico, positivista e tals, mas esses dias ficou branco do susto que tomou com a própria sombra.
Não existe maior ministério que a cabeça humana e nada é mais assustador que um coração temeroso! A terapeuta aqui agradece a história - fiquei 15 dias esperando, uma judiação. Obrigada pelas gargalhadas e pelas ideias que agora desfilam nesse cérebro. Sua inscrição na Fraternidade da Pá está quase aprovada!
Gde abraço da coleguinha aqui!