DISSONANTES >> Carla Dias


Sente aversão por ela, coisa sentida mais miúda do que a coragem de partir do convívio. Há dias em que é mais incômodo do que aversão, passa com o ajustar o nível da indiferença. Então, ela chega da rua, os cabelos no alvoroço do mundo lá fora, os movimentos coreografados pelas experiências consumidas durante o dia, tão diferentes da rotina desenrolada nos quatro cômodos da casa.

Ele é de jardim, por isso o tempo gasto a tocar folhas quase mortas de plantas quase bem cuidadas. Distribui mudas entre os amigos, mesmo sabendo que eles as descartam no jardim do casarão abandonado. Aprecia a ideia de o imponente depreciador de esquina se embelezar no avanço do descarte. 

Sente necessidade dele, vive a rearranjar repertório de conversa, para se mostrar conectada, porque o mundo se alimenta dos que se reconhecem na saúde, na doença, nos engodos, nos disparates. Gosta de quando ele silencia, e sua respiração sossega, deixando de ser, ainda que por míseros segundos, afobada, tornando-se trilha de desconforto que se ausenta no rastro de um piscar de olhos.

Ela é do concreto, gosta da altura dos prédios, do som intenso dos shopping centers lotados, dos espetáculos musicais de rua. Admira os que se entregam ao risco do desinteresse de quem passa, vê uma coragem intoxicante nisso. Sonha com o dia em que fará o mesmo: fazer sem prever o mínimo de retorno proveitoso. Ser esquecida por escolha.

Ambos gostam de programas de auditório. Não se importam de dividir o sofá às quartas e sextas à noite para assistir aos preferidos. Sente fascínio por ela, em especial quando gargalha engolindo o som, como se tentasse evitar que o prazer lhe escapasse pela boca. Desapega-se dele, o corpo vibrando com as palmas das pessoas do auditório.

Gostam de um bom vinho para acompanhar.  

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Imagem © AJS1, por Pixabay 

carladias.com.br







Comentários

Zoraya Cesar disse…
Não parece, não parece, mas parece: solidão em estado fluido.
Soraya Jordão disse…
Solidão a dois de dia, faz calor depois faz frio...Já dizia Cazuza
Albir disse…
Sós, até que a morte os separe.
Ah, a pior solidão de todas é a que experimentamos no casal. E você transmitiu com primor este desencontro de duas pessoas que vivem juntas.
Nadia Coldebella disse…
Separados, juntos! Solitários. Não existe solidão pior do que aquela em que temos companhia...

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