A MULHER SEM NOME >> MÁRIO BAGGIO

 



Ninguém se lembra do meu nome, ficarão assombrados quando souberem que tive um. Para toda a gente fui apenas tua mulher, tua esposa, tua rameira, a que desobedeceu, a puta rebelde. A ninguém importa se naquela noite abandonei minha casa, minha cidade, meus pais e meus irmãos e te segui — não cabe à esposa seguir o marido? Corri ao lado teu. Mas, oh, pecado mortal!, olhei para trás. E paguei meu erro com a própria vida.

 

Acaso tu não escutaste os gritos, não viste o fogo consumindo tudo, as chamas lambendo nossa casa e o corpo de meus irmãos? Nada disso te comoveu? Imagino que não. Mas eu vi tudo porque olhei. Eu tinha olhos e olhei. Foi a minha desgraça. Comigo tampouco te importaste. Tu correste, acovardado pelo medo. Medo, e também obediência cega. Subserviência. Covarde!

 

E por medo ficaste com nossas filhas naquelas cavernas, bêbado, fazendo filhos nelas, fazendo nelas netos. Presta atenção no que te falo, maldito: emprenhaste tuas filhas — nossas filhas! — como um ser tosco e lascivo, incapaz de refrear os seus mais abjetos instintos. Emprenhaste as meninas que saíram do meu ventre, as mesmas crianças que não hesitaste em oferecer aos estrangeiros como diversão para garantir a tua própria sobrevivência, enquanto eu continuo aqui, eterna estátua de sal, sem nome que alguém pronuncie, sem história que se queira contar, sem algum desgraçado que se lembre de mim, diariamente espantada e sem entender as virtudes do medo e da covardia. Do teu medo e da tua covardia, do medo e da covardia de toda aquela cidade.

 

Enquanto viveres, que a tua vida seja amaldiçoada pelo sal desta terra, pelo meu sal.

 

Imagem: Pixabay


Comentários

Jander Minesso disse…
Baggio, essa sua coragem de enfiar as duas mãos na treva mais horrorosa do ser humano pra ver o que tem lá dentro é muito f*da.
Zoraya Cesar disse…
À coitada da mulher de Lot só restou o opóbrio ou o olvido. Ela sim, amaldiçoada porque teve coragem de olhar para trás. Excelente.
Zoraya Cesar disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Albir disse…
Muito bom, Baggio! Nenhum livro merece censura, mas alguns textos sagrados - melhor não citar nomes - deviam ter classificação etária!
Ai, um texto terrível porque, diferente das ficções de terror da Zoraya e da Nádia, a gente sabe que este tempo de horror realmente acontece. E contado com uma lucidez que chega a dar vertigens. Esta coragem de enfiar as mais nas trevas humanas, como comentou o Jander, é de fato admirável.
Nadia Coldebella disse…
A mulher de Lot! Sempre pensei no simbolismo que esse texto carrega: ao olhar para traz, para aquilo que queima (o passado, o que deve ser deixado e esquecido?), a mulher de Lot não só se condena, mas condena a quem vem depois dela... Isso enquanto Lot dorme - se bem que essa é tbm conversa pra boi dormir. Mas ela vira sal, e sabe o que dizem sobre o sal da terra, não é? Essa parada do incesto sempre me intrigou, tão imoral né? Mas se eu te contar o q andei vendo nessa vida por causa do trabalho que eu faço... Nossa, tive um insight agora: vi muitas mães como essa mulher de sal, olhando apenas para si e imobilizadas pelo passado, enquanto suas filhas são violadas nas cavernas desse mundo...
Gde abç

Postagens mais visitadas