AMARELO-ÓBITO >> Ana Raja


Na certidão de óbito, o horário da morte acusava precisamente 20h15 de um domingo fosco. Ninguém mais verá o rosto de Clarice, nem observará o seu jeito de astronauta.

Marcos a achava surpreendente. Até para morrer, a esposa pensou na família. Nunca se arrependeu de tê-la escolhido. Ainda se lembra de sua lista extensa de pretendentes. Analisou e experimentou todas, com perícia profissional. Não se casaria com qualquer uma. E ela, a que engravidou aos dezesseis anos, foi a escolhida.

Marquinhos — me refiro a ele dessa forma, porque Clarice o chamava assim — começou a repassar em sua mente os detalhes da semana da morte da querida esposa, e se maravilhou com os sinais deixados por ela. 

Havia dado um jeito em tudo. “Deus do Céu, a coitada mereceu viver ao meu lado”, repetia o marido, engasgado em um choro duvidoso. 

A casa estilo moldura. Espelhos que mostravam os cantos esquecidos. Piso encerado e lustrado indicavam o avesso desconhecido. A comida congelada daria até a missa de sétimo dia. Ninguém precisaria se preocupar durante a semana de sua morte. A mesa da copa ficou arrumada para o café da manhã do outro dia. Nenhuma louça na pia, nem café vencido na garrafa. O pão... até no pão da sobra do café ela pensou, e fez torrada com azeite e orégano. 

O mais incrível para Marquinhos foi encontrar o vestido para o enterro ao lado do corpo desfeito de Clarice. Ela poupou a todos de procurarem uma roupa que pudesse expressar a sua feição suave, arrisco dizer, de paz.

Nenhum familiar sabia da sua cor preferida: amarelo. 


Comentários

Jander Minesso disse…
Se você soubesse a quantidade de lembranças que esse texto me trouxe…
Mário Baggio disse…
Belo texto, Ana. Trágico. Pensado. Planejado. E o vestido escolhido. A cor: amarelo. Setembro.
Anônimo disse…
Me trouxe lembranças tbm… acho que conhecemos alguém em comum que se assemelha. Todos nós temos, acho!. Dizem que não se pode dizer que uma “morte” foi bonita porém, acredito, que dentro do peso que ela representa, temos sinais que só serão vistos após.senti muita “doação” nesse texto! Dela, a que gostava de amarelo, a cor mais vibrante do sol.
Anônimo disse…
Que crônica, meus senhores. Ana, a sua sensibilidade, a delicadeza e potência das suas palavras, contribuem de forma determinante para um
Tema tão necessário.
Zoraya Cesar disse…
que belíssimo texto, Ana! que sacada genial ir nos preparando para a ideia do suicídio (li Mulheres que correm com os lobos, entao despertou minha memória) e tudo com uma leveza! A maneira como vc,, sutilmente, nos mostra a personalidade do 'Marquinhos". E o desfecho do vestido amarelo. Simplesmente demais! Uau.
Anônimo disse…
Contundente!!! O que mais gostei foi o que ficou nas entrelinhas. Aí está a genialidade da escritora. Parabéns pelo texto!
Maria Borghi disse…
Texto pesado, forte, arrebatador que apesar de ter tudo planejado, nos remete ao único destino de todos. A cor amarela escolhida por ela perpassa uma luz, que tenta justificar seu plano de morte. Ana Maria, Anaraja e todas as Marias que existem em você, trazem sua delicadeza ao tentar amenizar esse momento. Texto incrível.
Nadia Coldebella disse…
Estou aqui, refletindo maravilhada: "jeito de astronauta" - se sentia estranha nesse mundo?; Mércia viver ao lado do Marquinhos - melhor seria se isso fosse uma pergunta que ele fizesse a própria consciência, ele, que viu os sinais... E a cor. Linda referência ao setembro amarelo. Que texto! Quantos significados não ditos! Não sei porque, não a hei pesado, achei triste. E fiquei com muita vontade de bater no Marquinhos.
Ana, sua escrita está sensacional. Acho o período simples transmite impacto, alem disso Uma crítica sutil que nos leva a reflexão. Parabéns!
Albir disse…
Fiquei com a certeza de que ela entregava muito mais que recebia do marido e da família. Lindo texto!

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