DR. MÁRCIO NÃO DESISTE, O KARMA TAMBÉM NÃO. A LUTA É ACIRRADA >> Zoraya Cesar



Dr. Márcio passara da meia idade para a idade e meia. E, ao ver que a estrada à frente era bem mais curta que a estrada que ficara para trás, sentiu remorsos por uma vida não plenamente vivida, restrita a trabalho e seriedades. 

Nosso amigo era um velho pré-datado. Nunca fora de festas e viagens com amigos, nunca enchera a cara ou perdera as estribeiras, nada de folias juvenis, estripulias. Nunca dera um mau passo. Não sabia tocar nada, dançar. Seu passatempo era jogar Soduko.


E deu para invejar o cunhado, que tinha a sua idade, um bon vivant que jamais tivera emprego fixo, mas, ainda assim, seus trabalhos flutuantes lhe permitiam viver la vida loca. Era popular, conhecia Deus, o Diabo e o mundo e estava sempre cercado de belas mulheres. Destemido, arrojado, um sportsman que fazia corridas off road, percorrera a Rota 66 de moto; montanhista, praticante de cliff diving*. Enfim. 

Nessa vibe de viver perigosamente, Dr. Márcio se meteu em algumas confusões com uma boneca inflável; foi dopado por um travesti; teve de ser resgatado em uma montanha. Um desastrado.

Mas ele não desistia. Estava determinado a se transformar numa persona descolada antes de morrer. Teria um estilo cool, faria cruzeiros nas Bahamas com a mulher.

(Se perguntassem o que ela queria, a discreta e paciente senhora diria que essa história era dele, não dela. E voltaria a cuidar da própria vida).

Vendo as fotos do cunhado no instagram, Dr. Márcio teve uma ideia brilhante. 

Praia! E suas mil atividades esportivas glamurosas (peteca estava fora). 

E daí que ele odiava pisar na areia, os ambulantes, as crianças barulhentas,  a água gelada, os cocôs de cachorro. Dane-se se ele não tinha jeito pra esportes. Ele é que não passaria o resto da vida como o velho do sofá. 

BEACH TENNIS

Dr. Márcio achava que sua parca experiência em pingue-pongue, perdão, tênis de mesa, era suficiente para garantir alguns bons saques. Viu uma meia dúzia de macróbios respeitáveis jogando e decidiu entrar no time. 

Sentiu uma pontada suspeita no ombro logo na primeira jogada. Errou todas as trocas de bola. Escorregou de bunda, as pernas pra cima, precisou de ajuda para desvirar. A única bola que conseguiu rebater atingiu a testa de um velhinho inocente que assistia à partida, e que caiu feito um poste morto. Os tais macróbios respeitáveis soltaram um palavreado que faria corar de vergonha soldados na caserna.

O instrutor ainda tentou dar uma aula em separado para ele, mas Dr. Márcio declinou. Sabia identificar olhares assassinos e os colegas não deixavam dúvidas quanto à inconveniência de uma próxima vez. 

CANOAGEM 

Ou Dr. Márcio não acreditava em preparação, ou a ansiedade solapou sua coerência cartesiana. 

No seu entender, a canoagem prescindia de força física. E lá se foi ele, carregando os músculos adormecidos, os cambitinhos esqueléticos, a pochetinha (não tão ‘inha’, mas sejamos generosos), os braços flácidos.  

Quinze minutos depois, os joelhos começaram a reclamar da posição forçada e suas mãos macias de sedentário ficaram esfoladas. O corpo doía em partes que Dr. Márcio nem sabia existirem.  

Cogitava se atirar na água e acabar com aquela tortura quando soltou um pum fenomenal, barulhento, pegajoso, nauseabundo. Nocauteado, o colega de trás só teve tempo de murmurar ‘meu Deus, o que é isso’ e vomitar. Um vento filho da puta carregou o flato do Hades para frente e a equipe exigiu voltar o quanto antes, já tinham três passando mal. Dr. Márcio fingiu passar mal também. Mas não enganou ninguém. 

Dolorido, envergonhado, saiu se arrastando pela areia, tal qual um lagarto cansado. Só conseguiu voltar a andar normalmente depois de alguns dias deitado no sofá. 

STAND UP PADDLE 

O que poderia dar errado? Era só ficar numa pranchona e remar. De remo ele agora tinha alguma experiência. E, sendo um esporte individual, não passaria vergonha. Só ele o mar, um banquinho, um violão. Agora a mulher e o cunhado haviam de ver, ele podia ser um homem que aproveitava a vida! 

Já se via tirando fotos ao pôr do sol, um Tritão intimorato a singrar os mares. 

Primeiro, perdeu o remo. Depois, o rumo. As águas balouçantes o apavoraram e ele se deitou, agarrado na prancha, os olhos fechados. Pedir socorro, nem pensar, seria muito degradante. 

O instrutor, aflito, vendo o aluno já idoso ir se afastando mar adentro, pediu socorro.  

A prancha virou. Dr. Márcio viu seus sonhos afundarem e seu último resquício de dignidade se afogar quando um sargentão robustão negão do Corpo de Bombeiros o resgatou e o carregou para a areia como a uma frágil donzela em perigo. 

Humilhação pouca é bobagem? É. O salvamento foi filmado e registrado por dezenas de celulares e colocado nas redes sociais. E se Dr. Márcio pretendia deixar o assunto morto e afogado para sempre, morreu na praia. O cunhado recebeu uma das postagens e tratou de espalhar pela família, amigos, conhecidos...

LAR DOCE LAR

Em casa, Dr. Márcio planejava como escapar daquele marasmo infernal e viver o que nunca tinha vivido. Não queria clubes de xadrez, bocha nem nada convencional ou tranquilo.  

Queria emoção.  

O cunhado conversava sobre os preparativos para uma excursão de pesca submarina no Caribe. Dr. Márcio pensou em polvos gigantes, tubarões assassinos, em sofás-túmulos. Tomou uma decisão. 

- Cunhado! Adivinha quem vai com você nessa aventura. 

---
* Cliff diving - salto de grandes alturas para mar, piscina, rios sem equipamento de segurança. 

Outras aventuras do Dr. Márcio

A aventura inflável do Dr. Márcio - ele não queria trair a esposa. Logo, uma boneca inflável parecia ser a solução perfeita para uma aventura extraconjugal. Mas nada é o que parece

Outra malfadada aventura do Dr. Márcio - sua mãe nunca te ensinou a nao aceitar bebidas de estranhos?

Dr. Márcio e sua aventura nas montanhas - 1a parte - medo de altura é para os fracos

Dr. Márcio e sua aventura nas montanhas - 2a parte - ninguém tem mais privacidade nesse mundo

Imagem https://www.pickpik.com/man-jumped-cliff-water-woman-body-of-water-90074

Comentários

Anônimo disse…
Esse mané vai acabar antecipando a volta para o criador!
Antonio Fernando disse…
Kkkk. Rindo sem parar do pobre velhinho. Eu não vou pro Céu.
Obrigado pela leveza do conto, amiga.
Leila disse…
Flato de Hades é mortal 🤣🤣🤣
Durante o SUP, poderia ter sido mais vergonhoso, resgate de helicóptero, o afogado vem naquele " puça"!😬😬😬 Sempre pode ser pior, Dr Márcio não é fraco, não 👏👏👏🤣🤣🥰
branco disse…
muito bom, melhor até que excelente... mas está linha me deixou pensativo, ". O cunhado recebeu uma das postagens e tratou de espalhar pela família, amigos, conhecidos...", seria o cunhado tão descolado ou apenas um ser inseguro?
é nos textos leves que encontramos águas turvas e nisso Zoraya é craque.
Marcio disse…
Eu nem vou comentar a escolha do nome do personagem, para não indicar para os demais comentaristas que o texto nem é tão ficcional quanto os absurdos narrados podem sugerir.
Mas teve uma frase que eu achei merecedora de algumas reflexões:
"Teria um estilo cool, faria cruzeiros pelas Bahamas com a mulher."
Ué, mas Dr. Márcio é o benchmark do estilo coolzão. Por que diabos ele ainda quereria ser ainda mais coolzão?
E o que um cruzeiro tem de tão descolado? A menos que as Bahamas sejam muito diferentes nessa matéria, isso é um daqueles programas que as pessoas com algum discernimento fazem apenas uma vez, só para se arrepender.
Hahaha dando muita risada com as aventuras do Dr. Márcio! O rito do texto está excelente, e os trocadilhos então, nem se fala. Não conhecia este seu personagem Zô, adorei!
Maria disse…
Gostei desse Sr. Márcio!
Danadinho!
Vamos ver se ele sobrevive às aventuras que lhe esperam.
Mary
Jander Minesso disse…
O cara foi fazer Beach Tennis. BEACH TENNIS. Isso aí é uma alma sem salvação. E a cena do caiaque foi dantesca, mas maravilhosa. Hahahahahaha! Obrigado pela leveza que o Márcio trouxe ao meu dia, Zoraya!
Zoraya Cesar disse…
Anônimo - hhaah, verdade, mas vamos torcer que não, coitado.

Antonio Fernando - não se preocupe, nenhum de nós vai hahahaha

Leila - puxa vida, não é que poderia ser mais vergonhoso mesmo? do que ele escapou, hein?

branco - bem, eu não conheço direito o cunhado, mas, pelo que soube, é uma boa pessoa, apenas não resiste a fazer seu papel de cunhado estereotipado.

Márcio - amigo, já te garanti que o nome é mera coincidência. Tem culpa eu se ele foi batizado assim? Nenhuma, sou inocente nessa história. E vc tem razão, cruzeiro pelas Bahamas é o tipo de programa pra quem nao sabe fazer programa kkkkkk Tadinho do dr. Márcio. (ele, não vc)

Alfonsina - ah, puxa, obrigada! O Dr. Márcio tem outras aventuras, todas igualmente malfadadas. Mas ele é, antes de tudo, um forte. Aguarde por novas emoções.

Maria - ahah, somos ambas torcendo pelo Dr. Marcio!

Jander - eu q ri demais do seu comentário! 'alma sem salvação' kkkkkkk. E que bom que trouxe leveza ao seu dia (vc sabe q tb nao vai pro céu, né? kkkkk)

A todos, muito obrigada!
Soraya Jordão disse…
Zoraya, a ironia, o humor e a leveza com que você conduz o texto, não deixa de nos fazer refletir sobre o desastre de querer ser o que não se é. Muito interessante. Gostei muito>
sergio geia disse…
Coitado desse dr. Márcio. Facilita uma pra ele, Zô.
Carla Dias disse…
Zoraya, Zoraya... Seus personagens aventureiros, repletos de vontade de chegar/fazer/sentir de um tudo, ainda que sofram o diabo. Adorei o Dr. Márcio.
Anônimo disse…
Zoraya, personagem que descreve essa geração recusadora do fim. É possível fazê-lo e, ao mesmo tempo, fugir do ridículo? A graça sempre está nessa pergunta e em jamais respondê-la completamente. Grande texto. André Ferrer aqui.
Zoraya Cesar disse…
Soraya - que bom q vc gostou e vislumbrou duas versões da história, a engraçada e a lição de vida. Valeu!

Sergio - mas a culpa não é minha! Ele é q insiste. Dr Márcio é um tinhoso bem intencionado. Tb tenho peninha, mas o q posso fazer?

Carla - puxa, fiquei bem feliz de vc ter amado meu querido (e atrapalhado) Dr. Marcio. Pois ele é de admirar mesmo. Pois ainda q pelos motivos errados, ele tenta mudar para melhor.

Ferrer - olhe, q aceitar o fim não é pra qualquer um nao. Outro dia vi um filme em que o personagem diz q não tem medo de morrer. Medo de morrer tem quem nao aproveitou a vida e quer uma segunda chance, nem q seja por pouco tempo. Mas ele, personagem, tinha vivido uma vida plena. Tenho fé q um dia Dr. Marcio vai encontrar o caminho dele. Um pouco machucado, mas vai heheheh

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