ESTA CRÔNICA NÃO É SOBRE MIM >> Carla Dias


Conversar ainda é meu esporte preferido. Não atingi o nível dos que nasceram com a capacidade afiada de se expressar por meio da palavra dita. Não raro, esqueço o termo, engasgo, desisto da frase no meio, misturo tudo com as gargalhadas dedicadas a satirizar a minha pessoa.

Eu levo tempo para engatar na conversa, e já me dei conta de que não há como mudar o relacionamento que mantenho com ele. Quando vejo, o dito passou umas três vezes por mim, enquanto eu ainda tentava contar a quilometragem da primeira volta.

Vivo me demorando, mesmo quando acelero o dizer, transformando uma conversa que começou na cadência de The Thrill Is Gone — a original, de Roy Hawkins, single lançado em 1951 — em uma versão puxada de Empty Arms, de Stevie (maravilhoso) Ray Vaughan & Double Trouble.

Houve quando eu praticamente não falava. Minha comunicação se dava por bilhetes e poemas. Não era ruim, apenas diferente, na leitura de muitos, esquisito, mas rendeu visitas ao passado bem especiais. Alguns amigos ainda guardam esses bilhetes, porque eles não eram sobre mim, mas sobre nós, nossa conexão, e a capacidade deles de escutar o que eu tinha a dizer, ainda que, na maior parte do tempo, recebessem de mim o silêncio.

Começar a conversar foi resultado de aprendizado, primeiro porque eu adorava escutar o que as pessoas tinham a dizer, e, na minha cabeça, as respostas, considerações, opiniões e reflexões aconteciam. Eu não tinha voz de dizer, mas tinha voz de saber as importâncias desfiadas durante essas conversas. Então, conversar se tornou minha forma de aprendizado e meu aprazimento preferido, mas em doses homeopáticas, ou, melhor dizendo, em companhias algumas. É que não me refiro às conversas formais ou casuais, importantes, mas breves, e sim às que levam uma das mais playlists longas que já criei que criei para acabar. Na verdade, muito do trazido por elas não acaba, fica comigo, para meditação.

Esta crônica não é sobre mim, mas sobre as pessoas que me ensinam, o tempo todo, algo que eu não saberia se não parássemos para conversar, se não escutássemos um o que o outro tem a dizer, apesar do prazer, da dor, da leveza ou da melancolia do dia. É sobre a prática daquela teoria: ao falarmos sobre determinados assuntos — e nem sempre eles têm de ser catárticos, filosóficos, carrancudos; há espaço para a suavidade e a graça — passamos a perceber como os problemas podem ser resolvidos, os projetos realizados, soluções compartilhadas e a tristeza compreendida para o bem-estar da felicidade, que não nasceu para operar sem pausas.

Imagem © 愚木混株 Cdd20, por Pixabay

carladias.com.br

Comentários

Ana Raja disse…
Carlinha, adorei! Me fez lembrar das nossas conversas constantes. Às vezes, conversas perdidas (não tão perdidas assim), de ensinamentos, de planos ou tudo isso num encontro só. Mas o legal é que vou armazenando uma porção de palavras nascidas desses encontros para no futuro escrever uma crônica. Já pensou?
Carla Dias disse…
Obrigada, Ana!
Sim, nossas conversas são bem doidas... Medo das suas anotações. rs.
Beijos!
Jander Minesso disse…
Como diria o Stephen Hawking (é assim que escreve?): “tudo o que precisamos fazer é garantir que sigamos falando.” Tá lá na música do Pink Floyd. Baita reflexão aqui, Carlandreia. A sua, não a do Hawking. Enfim, já falei demais.
Zoraya Cesar disse…
"bem-estar da felicidade, que não nasceu para operar sem pausas." tive de ler duas vezes para entender a verdade profunda que ela carrega. Me lembrou de longe aquele desenho Divertidamente, no qual a gente vê que a vida não pode ser completa nem real numa felicidade sem pausas. Que frase!!! Só mesmo D. Carla Dias!
E sim, conversar é preciso - ouvir, falar, calar, tudo faz parte de uma boa conversa e, realmente, como nosso mundo se engrandece!

Postagens mais visitadas