Rana >> Alfonsina Salomão



Os braços doloridos de Rana formigavam. De vez em quando, davam sinais de que iam sucumbir, deixando a criança se espatifar no chão. Nesses momentos, Rana se reerguia, trocava o filho amado de braço, sacudia a cabeça com vigor, empurrava o cabelo suado para trás das orelhas, dentro do lenço amarrado às pressas na cabeça, e continuava. Os olhos, semicerrados num esforço vão para filtrar a luminosidade do sol a pico, ardiam com a poeira que subia dos pés. Esses iam descalços. As solas, endurecidas pelo trabalho cotidiano da terra, também esmoreciam. As bolhas do dia anterior tinham se aberto em inúmeras feridas vermelhas, a carne viva tocava o solo que ela se apressava em deixar. Rana erguia a cabeça, cerrava os lábios ressequidos, concentrava-se no caminhar, um pé após o outro: direito, esquerdo, yamin, shmeil, yamin, shmeil, yamin, shmeil, repetia mentalmente, abstraindo como podia o choro desolado do menino que carregava. Não havia tempo para fraquejar. Eram dois a mais numa fila de velhos, crianças e mulheres que se estendia até onde a vista alcançava. Todos desarraigados, todos muhajjarîn.

Cinquenta anos mais tarde, quando Rana contava, uma vez mais, o caminho do exílio para seus netos, sempre havia um momento em que parava a história e repetia: Subbayr, mirando o vazio no chão, a cabeça abanando de um lado para o outro. Subbayr... murmurava a velha desconsolada para si mesma, como se houvesse perdido o fio da meada, talvez para sempre. Mas então, ela se refazia, fincava os olhos nos dos ouvintes, desafiadora, e quase gritava: Subbayr!, causando espanto, às vezes fazendo as crianças menores chorar. Subbayr, dizia uma vez mais, já pacificada, antes de prosseguir e explicar que esse era o nome dos cactos que cresceram no interior das casas abandonadas. 

- Essas plantas - dizia, o dedo indicador em riste, marcando a importância do ensinamento - essas plantas são o que me tornei naquele dia, naquela estrada, o que vocês devem se tornar também: paciência, resistência. Não há outro modo. É essa nossa sina. É esse nosso destino.

Depois a velha se perdia de novo em seus pensamentos... O tempo parecia congelar em torno de Rana, que permanecia imóvel no degrau do casebre, inclinada para a frente, as mãos entrelaçadas, os braços descansando sobre os joelhos, a expressão impenetrável por trás das rugas profundas. A saia longa deixava entrever seus pés inchados, enfiados em chinelos de plástico grandes demais. Só Deus sabia o que se passava na sua cabeça em tais momentos. Tanto havia acontecido desde que deixara sua terra... O desaparecimento do marido e do irmão... A transformação do filho em guerrilheiro, fédaï, e mais tarde em mártir, shahid, enchendo-a de orgulho aos olhos dos outros, roendo sua alma no escuro. O massacre do campo de refugiados: as luzes dos tanques de guerra, as pessoas correndo apavoradas, ziguezagueando, baratas estonteadas pelo medo; os gritos, berros, lamúrias e, no dia seguinte, os corpos. Os deslocamentos, novos exílios. O eterno recomeçar: rezar, cozinhar, trabalhar. As pequenas humilhações. E algumas alegrias também: casamentos, nascimentos, café com cardamomo e cigarros escondidos com as vizinhas. 

Nada disso escapava dos lábios de Rana. Ficava tudo preso nela, suspenso, como as crianças que a rodeavam e aguardavam, fascinadas e impacientes, um sinal para se dispersar. Um longo suspiro, um gesto das mãos da matriarca e elas corriam enfim, eufóricas, ao encontro do colega que aguardava a poucos metros dali, uma bola de futebol murcha nos braços.


O texto acima foi publicado na antologia Retire Aqui sua História, da editora Sinete. É a história fictícia, inspirada em outras que escutei quando vivi em um campo de refugiados, de uma mulher que toma o caminho do exílio em 1948, data da criação do estado de Israel por cima da então Palestina. Os palestinos chamam esta primeira experiência de despossessão Naqba, ou catástrofe. Depois desta vieram outras, cada vez que o estado colonizador decidiu expandir suas fronteiras por cima do que ainda restava do território palestino. Hoje, numa faixa estreita onde se vive um bloqueio desumano há treze anos, milhares de pessoas morrem ou são deslocadas de suas casas. De prisão a céu aberto à cemitério... tal parece ser o destino de Gaza. Subbayr é a palavra guia de um povo que sobrevive. Esta é minha pequena homenagem a este povo resiliente. 

Comentários

Jander Minesso disse…
Que história bem contada. Nostálgica e contemporânea; e dolorosa sem deixar de aquecer o coração, ainda que de um jeito torto. Me emocionei.
Zoraya Cesar disse…
Dentro e seguros em nossas casas, a gente nao tem a mais pálida ideia da desgraça que é a imigração forçada, vc ter de fugir de sua casa, sua terra, seu país, pq a humanidade falhou. Esse texto, toda vez q leio, me arrebenta.

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