GATOS >> Sergio Geia

 


Não me considere um abelhudo, mas frequento a sacada do meu apartamento sempre que posso, em especial, nos finais de semana. Livro na mão com um céu dourado no horizonte, ou uma maçã geladinha, ou mesmo uma taça de vinho já de noitinha, com bossa nova a tocar na vitrola, ou Oasis, daqueles irmãos que não se entendem. 
 
Quando vi os novos moradores do prédio da frente imaginei criança na casa. É que poucos dias depois da mudança, lá estavam dois homens revestindo a sacada e as janelas com telas de proteção. 
 
Mesmo sendo em outro edifício, gostei de saber que a moradia ganharia vida. Mas os dias foram passando e nada de criança. Até que percebi: as telas não eram para elas, mas sim, para os gatos do casal; dois. 
 
(Um pouco de honestidade agora, talvez um excesso. Quando cheguei até esta parte do texto, parei. Dias. Semanas. Senti a necessidade de descrever os gatos, um pouco que fosse, mas eles sumiram. Eu até poderia utilizar de subterfúgios cronísticos, dar uma espiada, por exemplo, no Instagram, nos gatos da Ana Savolet, ou mesmo no Jobim da Francine Presoto, e me valer deles para descrever os meus, quer dizer, os do vizinho, misturando realidade com um pouco de criação literária. Não. Não há nada melhor do que a verdade, embora, às vezes, em nome de um bem maior, não haja outro jeito. Tive que esperar. Demorou. Estava até desconfiado de que algo de ruim pudesse ter acontecido. O casal lá, de dia, de noite, e nada dos gatos. Já até pensava no que fazer com essa crônica que prenunciava um fim trágico. Detalhe: por princípio, sou contra fins trágicos em crônicas) 
 
Um dos gatos tinha os pelos bege, a pata dianteira mais clara que o resto do corpo, e era também o mais preguiçoso. O outro — pelos pretos, embora a barriga tivesse um tom caramelo, bigodes brancos, olhos azuis arregalados — era o mais arisco. Não parava um segundo e vivia a trolar o gato bege. 
 
O que não entendi — a razão de escrever sobre os gatos foi essa —, é que a tela de proteção não servia para nada. Explico. Sempre via o casal a fumar na cobertura, as suas crias andando bem à vontade, penduradas por vezes num muro que só de imaginar me dava calafrios. 
 
Penso que num primeiro momento eles se preocuparam. Depois, acharam que foi excesso, que não havia perigo liberar a cobertura. E relaxaram. 
 
Pouco tempo depois de terminar Gatos, o casal se mudou.
 
 
 
Ilustração: Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
Mais uma delícia de crônica, Sergio! O devaneio no meio da história, o anticlímax, as confissões, a leveza: esse texto tem tudo. E vou parar por aqui, porque já comecei a dissecar com termos técnicos uma crônica fantástica que não precisa terminar numa mesa de cirurgia literária. Obrigado pelos gatos.
Ana Raja disse…
Sérgio, que crônica boa ler. Fiquei presa na história e nas imagens que você construiu tão bem. Parabéns.
sergio geia disse…
Ana e Jander: brigaduuuuu!
Que gostoso ler este texto Sérgio, me senti lá na sacada observando os gatos com você! Adoro textos sobre coisas simples, como observar os vizinhos. Sobre as telas: sempre estranho estas proteções quando vou ao Brasil, aqui na França não tem disso. Acho que eles preferem correr risco de uma criança se estatelar no chão do que enfear a cidade. imagina Paris cheia de telas de proteção? Sacrilégio! Eu passei apertado quando as crianças eram pequenas, mas elas acabaram entendendo que não rola de se dependurar na janela. Enfim… estou me desviando… e fiquei com uma dúvida: por que será que os vizinhos se mudaram tão rápido?
sergio geia disse…
Substantivo feminino: ler seu comentário torna o dia de qualquer escritor mais feliz; você tornou o meu. Obrigadíssimo.

Amandida (Alfonsina): como um braguiano que sou, também adoro escrever sobre coisas simples; o mundo anda tão complicado, como já disse a Legião. Sobre as telas, aqui em casa também não tenho. Claro que não há crianças nem gatos rsrs. Mas o que você fala é um bom ponto. Me sugeriram certa vez vidros de proteção. Nunquinha.
Carla Dias disse…
Adoro as cenas do cotidiano sendo compartilhadas por seu olhar.
Zoraya Cesar disse…
Mais do que nunca vc me lembrou o Rubem Braga, q impressionante! Que delícia! E concordo plenamente com vc: inaceitável finais trágicos em crônicas!
sergio geia disse…
Carla, essas do cotidiano são as que gosto mais.

Zoraya, acho que você pegou o pulo do gato.
Albir disse…
Ainda bem que você não gosta de finais trágicos em crônica, mas fiquei tenso.
sergio geia disse…
Albir, acho que você também pegou o pulo do gato rsrs

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