Histórias do meu pai: O velório do tio-avô >>> NADIA COLDEBELLA

Estou colecionando algumas pérolas impagáveis contadas pelo meu pai. Essa aqui ele jura que não é lorota, mas as duas testemunhas, meu tio e o meu avô  (a quem chamarei de nono, que é o jeito que a italianada chama), já passaram dessa pra melhor e não têm condição nenhuma de me confirmar o acontecido. Como de hábito, me reservo o direito de dar a esse causo ares de pretensa literatura.

O ocorrido se passa, de acordo com meu pai, há pouco mais de trinta anos, ou seja, no final da década de oitenta. Década de oitenta foi um período estranho e sensacional ao mesmo tempo: as informações chegavam por partes, distorcidas e, às vezes, a comunicação com os entes queridos distantes era bem difícil. Mas meus pais sempre zelaram pela presença de um telefone em casa, que era para poder falar com a parentela do Sul.

À critério de informação, aqui no sul existem dois “suis”: O Sul, maiúsculo mesmo, que é o Rio Grande do Sul, e o outro sul, que inclui o Rio Grande do Sul e o que está mais acima dele, no caso, Santa Catarina e Paraná. Para alguns, segundo meu pai, Paraná nem é sul, embora isso seja ponto pacífico no mapa do Brasil.  

Bom, meu pai nasceu no Sul e cresceu por lá, no meio da italianada. Eu acho que eles nascem meio grudados, com um tipo de cordão umbilical invisível e irrompível, que liga todo mundo a todo mundo.  Meus nonos migraram para o Paraná quando meu pai era adolescente, mas a ligação com os tios maternos e paternos não afrouxou, graças ao telefone.

E foi num desses telefonemas rápidos, caros e a cobrar, que eles souberam que o irmão do meu nono estava doente. Aquilo entristeceu todo mundo, um parente querido que está longe e doente nunca é algo bom de se pensar. Passaram a semana apreensivos e no fim de semana, em outra ligação bem rápida, também à cobrar, feita por um membro aleatório da família, receberam a notícia: o tio havia morrido.

Depois de muito choro, rapidamente meu pai convocou meu nono e o marido da minha tia, a quem chamarei de tio. E resolveram dar uma “descida” ao Sul, pois ainda conseguiriam chegar a tempo do enterro. E assim foi feito.

- Foram dez horas de viagem num gol bolinha, acredita? - não acreditei que ele ainda chamava o antigo golzinho, de traços quadrados, de gol bolinha, sabe-se lá porquê. 

Fizeram o percurso tomados por uma certa melancolia e por uma nostalgia triste. Meu nono foi calado durante toda a viagem. Estava pesaroso, sentado no banco da frente, ao lado do motorista, apertando firmemente aquele treco de segurar que ficava acima da porta nos carros de antigamente - ele sempre sentava ao lado do caroneiro, em qualquer carro que entrasse, mesmo se houvesse mulheres por ali. Acho que esse banco equivalia a ponta da mesa na hora do almoço. Meu pai e meu tio se alternavam, ora no volante, ora esticando as canelas no banco de trás. 

Depois de algumas horas, em Santa Catarina, se depararam com uma íngreme serra que precisavam descer. Era a Serra do Rio do Rastro, que na minha opinião, foi criada para que pessoas sem ter o que fazer observassem a gravidade a partir dos movimentos dos carros se espatifando ribanceira abaixo. 

Até aquele momento, meu tio estava no volante e havia avançado alguns quilômetros serra abaixo, mas logo parou o carro no acostamento:

- Não consigo mais - Teria dito a meu pai, mãos tremendo igual folha verde.  (Em defesa do meu tio, quero dizer que o entendo. Já dirigi naquela serra “maledeta” e sei perfeitamente o que a definição de tremer igual folha verde significa. Ainda mais para quem fica tonta só de virar a cabeça - lógico que não é meu caso. Eu posso descrever cada sensação que tomou conta do meu corpo e o profundo alívio que senti ao chegar no pé da serra, grata a Deus por não ter caído penhasco abaixo e virado objeto de observação).

Trocaram de lugar, para o embasbacamento do meu tio, observador da destreza e tranquilidade do meu pai. Pra ser exata, meu pai me disse que o tio ficou admirado por ele não ter medo de rolar pela ribanceira.


- Já estou acostumado - teria dito meu pai, o que de fato, até onde sei, é verdade, pois ele estava acostumado a fazer aquela rota pelo menos uma vez por ano e meu tio nunca havia dirigido por aquelas bandas.

Não sei se por causa da serra ou pela proximidade do destino, seguiram o resto da viagem calados. Ao chegar, dirigiram-se imediatamente à casa do tio-avô. Poderia ser que o velório fosse por lá - o que era algo bem comum naqueles tempos. Mas não havia ninguém em casa. O outro local óbvio era o pavilhão da comunidade, em que tudo acontecia: festa, missa, batismo, reunião, comício e, logicamente, velório. 

O local estava lotado, sinalizando que ali era velado alguém muito querido. Meu pai estacionou o carro e eles desceram. Estavam bastante cansados e consternados. Andavam vagarosamente, deixando o ventinho frio suavizar os nervos.

Sabe aquela sensação que invade as pessoas quando precisam se despedir de alguém que amam? Até a gente se dar conta, parece mentira, mas chega o momento em que não há como evitar o confronto com a óbvia realidade. É aquele ponto em que a garganta começa a se fechar e se você não for firme, o choro irrompe esgualepando a criatura.

Era nesse ponto que meu pai estava e imagino que meu nono também. De passos lentos, se aproximavam do pavilhão quando ouviram os gritos e viram gente em profundo desespero entalada na porta, tentando sair. Alguns, mais ágeis, haviam escalado os cerca de dois metros de parede do local apenas usando as mãos e agora encontravam-se também entalados, só que nos pequenos espaços, com pouca abertura, que ficavam próximos ao teto e que existiam com a pretensão de serem janelas. Ele tá vindo, ele tá vindo, era o grito da comunidade estarrecida, como se uma maldição eclodisse das profundezas da Terra para dar cabo a toda a vida existente.

Ocorre que, durante a choradeira pelo final da vida do defunto, este se mexeu e logo sentou-se no caixão, como se acordasse de um sono profundo. Jura meu pai, de pés não tão juntos, que isso acontecia de vez em quando em uma ou outra família daquelas bandas devido a falta de acuracidade dos médicos do lugar.

Os três homens da minha família estavam num misto de assombro e alegria pela possibilidade de o tio-avô estar vivo. Meu pai olhava ao redor para fotografar mentalmente o grande mico. Ele precisaria contar pra todo mundo depois. Avistou, ali perto, sentado numa cadeira, um homem igual ao tio-avô. Ele estava à vontade, de pernas cruzadas, um braço apoiado no encosto e a cabeça apoiada nas mãos, observando o auê das pessoas. Uma pessoa muito real, embora ao mesmo tempo tivesse um quê de etérea. 

Aquilo ressoou de forma muito estranha no íntimo de pai, que, duvidando do que via, cutucou meu nono:

- Tá vendo lá, pai, tá vendo lá? - ele falava ansioso - Tá vendo aquele homem?

Meu nono, que até então andava de cabeça baixa para esconder os olhos ainda lacrimejantes, levantou-os e estancou o passo, num profundo espanto. Não estava acostumado a ver assombrações. Ainda mais a do irmão no próprio velório. Ainda mais a de um morto que tinha se levantado da tumba. O tio-avô, vivo ou morto, sei lá, avistou os parentes e veio em sua direção, rindo, gesticulando os braços e gritando em italiano:

- Eu avisei que não tava morto, mas ninguém me escutou!

Meu pai me disse que quase se borrou todo e até pensou em fugir, mas manteve as pernas grudadas no chão pra não fazer feio igual o povo entalado na janela. E logo tudo se esclareceu. Eles descobriram que o tio morto que tinha se levantado era o cunhado do meu tio-avô e tio de quem havia ligado para dar a notícia de que o tio havia morrido. Eu fico confusa só de tentar entender essas ligações familiares e não tenho a menor ideia de que relação de parentesco esse cunhado do meu tio-avô teria com meu pai ou qual posição ocuparia na minha árvore genealógica. Acredito, porém, que era alguém importante no meio familiar, já que aproveitaram a viagem para dizer para todos que estavam consternados pela sua morte e também felizes pelo seu levantamento. 

Agora, anos depois, me pego aqui escrevendo e me auto examinando, achando uma pista do porquê da minha fixação por histórias de fantasmas. Só que isso não é da conta de ninguém. Com esse pensamento, encerro essa série de histórias do meu pai por aqui, mas me recuso a deixar de contá-las.


Comentários

Jander Minesso disse…
Que delícia de história, Nádia! Aprendi uma palavra nova (esgualepar); rolei de rir com a definição de sul, que muda conforme o Estado de nascimento do sulista; e pra variar, me amarrei no misto do prosaico com o sobrenatural da história. Foi uma bela coletânea, essa sua!
Max disse…
Aqui no RS se usa muito o esgualepado.
Carla Dias disse…
Nádia! Que história bacana de ser contada, mas que deve ter sido bem danada de ser vivida. Adoro histórias de família. Por meio delas, das repetições delas, aprendi o que é "versão dos fatos"... rs.
Anônimo disse…
Sou do norte do Paraná. Sempre riem de mim quando falo que sou sulista. Boa história Nádia. André Ferrer aqui.
Zoraya Cesar disse…
Como assim??? Exijo mais histórias de seu pai! Vc está me saindo uma excelente contadora de 'causos'. Como nao rir e querer mais?
Albir disse…
Ah, que pena, Nádia! Por favor, revire aí o seu baú e encontre mais algumas.

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