Ensaio sobre a coceira >> Alfonsina Salomão


Já vou logo avisando, para que quem chegou aqui esperando literatura não se decepcione: este é um texto vitimizador, cheio de autocomiseração e sem nenhuma sutilidade. 

Desde que me entendo por gente, coço. Parece que começou quando eu tinha um ano. Perguntei à minha mãe o que aconteceu nesta idade. Ela respondeu que eu coloquei o dedo numa tomada e levei um choque. Viria daí a coceira?

 

Certa vez duas médiuns voltaram bem antes no tempo e me explicaram que eu coço porque numa vida passada envenenei o homem com quem havia sido obrigada a me casar, causando coceiras terríveis que o levaram à morte. Coçar seria meu carma, vindo diretamente desta vida em um casebre rústico, num pasto esverdeado de um país chuvoso.

 

Cada vez que tenho uma crise de coceira medito, busco me conectar com as profundezas do meu ser para entender as razões que levam meu corpo a agir assim. É uma tentativa sempre infrutífera de me curar de dentro pra fora, que entretanto renovo todos os dias.

 

Desde quando você coça? Perguntam os médicos. Desde sempre, respondo, entre irritação e desespero. Sei que virão conselhos e receitas cuja inutilidade já foi testada. Já tentei de tudo, acrescento. Respondo a mesma coisa aos amigos esotéricos que propõe curas alternativas. Quando respondo de tudo realmente quero dizer de tudo. Uma das minhas últimas tentativas foi com um pajé da Amazônia, um homem de baixa estatura com o rosto pintado de preto e um impressionante cocar de penas de araras amarelas que descia até seus pés. Foi durante uma cerimônia de ayuasca e eu não sabia o que era mais surreal, as mirações que eu tinha quando fechava os olhos ou a visão dele repetindo encantações mágicas numa língua estranha ao mesmo tempo em que sacudia o maracá dando pulinhos em volta do meu corpo. 

 

Esta manhã, em meio a uma crise sem precedentes, debulhei-me em lágrimas no consultório do médico francês. Ele deu risadas e acrescentou: “Eu não deveria caçoar dos meus pacientes que choram. Mas já estou velho, não posso mais mudar. Sou um velho médico malvado”. Dei risada e continuei chorando, chorando e soluçando. Chorei muito na praça em frente ao consultório e, quando parei, liguei para a dermatóloga por ele indicada. A secretária respondeu que não poderia me dar um horário porque o alergista não colocou o nome da médica na carta de recomendação. Estourei: “Estou te ligando desesperada para uma consulta urgente e você me enche o saco por causa de uma burocracia? Onde está sua humanidade, merda?”. Estou cada dia mais parisiense. Depois me arrependi e pedi desculpas, a coitada estava apenas cumprindo seu papel... Este nosso mundo medíocre não anda se todos resolverem demonstrar humanidade. Imagina se começamos a nos comover cada vez que um ser humano faminto nos interpela implorando dinheiro, por exemplo? A roda da engrenagem quebra. 

 

Mas estou me desviando. Voltando ao meu umbigo, a verdade é que não é fácil viver se coçando. Sentada na sala de aula, eu olhava para os braços sem eczemas das coleguinhas com inveja, pensando como eram lindos e lisinhos. Quando você crescer passa, profetizavam. Não passou. E agora não são mais as dobras dos braços que me fazem me sentir feia, mas as pálpebras e a boca, inchadas e avermelhadas... É foda envelhecer sem poder se maquiar. Olho para as amigas com batom, rímel e lápis de olho e me sinto o ó do borogodó. 

 

Às vezes bate um desânimo enorme, me sinto muito inadaptada à vida neste planeta. Alergias são excesso de sensibilidade, disse certa vez uma tia do meu pai. Eu era criança e escutei a conversa com bastante atenção. Seria isto? Eu seria sensível demais? Coçar é uma força, me disse ontem mesmo meu marido, explicando que meu corpo reage a substâncias que passam despercebidas pelo seu próprio corpo. Supersensível e superforte? Não dá pra ser apenas normal? De perto ninguém é normal, parece. Acredito. Mas a anormalidade da gente é sempre pior do quê a dos outros. Confesso que tenho inveja das pessoas que não coçam nem quando estão rodeadas de bolos de poeira. Deve ser maravilhoso andar assim incólume em meio aos ácaros. É o fim da picada ser alérgica a seres onipresentes e microscópicos. Aliás, descobri que minha situação é ainda mais ridícula : sou alérgica ao cocô dos ácaros. 

 

Pondero comigo mesma me dizendo que tenho sorte por não ter nenhuma doença grave, mas fato é que esta coceira permanente está acabando com meus nervos. E o resultado é este texto chato. Desculpas, caro.a leitor.a, mas eu avisei. Escrevi assim mesmo numa tentativa de transformar o mal em força. Talvez se eu continuar escrevendo aos poucos a coceira vai se explicando. Até aqui nenhuma revelação, mas nunca se sabe. Uma ideia louca me vem à cabeça: e se eu for um destes artistas torturados, cuja criatividade nasce da dor? Desce ego, porque até aqui nenhuma linha revelou talento, menos ainda genialidade. Estou apenas caminhando. Não é isto a vida, caminhar? Li na vitrine de uma papelaria que viver é como andar de bicicleta: se parar cai. Então vamos pedalando, na esperança de dias e textos melhores. E aproveito para desejar uma linda semana, com amor e sem coceiras, a todes.

 

 

Comentários

Soraya Jordão disse…
Entendo perfeitamente seu cansaço. Sei que não é simples habitar um corpo que não cala.
Jander Minesso disse…
Eita, menina. Sinto muito por tudo que você precisa enfrentar. Não consigo nem imaginar como é viver se coçando, mas sem dúvida não é bom.
Zoraya Cesar disse…
Amandita, minha total admiração por vc aguentar tão galharda e silenciosamente esse sofrimento, que, na maioria das pessoas, seria quase incapacitante. Parabéns. Pensei q fosse rir com seu relato, mas do 2o parágrafo em diante só senti angústia. e qto ao velho médico malvado q chegou à velhice e nao aprendeu a ter compaixão, só podemos desejar que as pulgas de mil camelo infestem seus suvados e seus braços sejam curtos.
Albir disse…
Eh, dureza! Só posso sugerir que procure médicos menos cretinos. Esse aí merece infestações de sarna, piolho e chato ao mesmo tempo.

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