VINICIUS >> Sergio Geia

 


Na capa do disco sobre a mesa há um desenho: o vermelho da camisa, o branco dos cabelos, bigode austero a beijar levemente o cavanhaque; selinho? Olhos de um azul intenso, olhar de esguelha, o que vê? Descubro que a arte é de autoria de Iastake Fassimoto; no verso da capa, a foto original, inspiração para o desenho. 
 
Retiro o LP com cuidado, coloco a vitrola para funcionar: a voz do poetinha. 
 
O disco foi lançado pela RGE em 1985, cinco anos após a sua morte. Sucessos como Tarde em Itapoan, La casa, A tonga da mironga do kabuletê, Para viver um grande amor, Testamento, Morena flor, Regra três, e tantos outros. 
 
Há um texto abaixo do título das canções — a capa de um disco de vinil é um território a ser explorado —, escrito por Marcelo Godoy Simões. Chama a atenção: 
 
Ele nos ensinou, mais que nunca, que é preciso cantar, lembrar e ser lembrados. Com ele, aprendemos a ser amados e menos armados. Poeta, poetinha camarada, sua vida foi uma linda canção de amor. 
 
Como um bom aluno, ouvi mais dessa canção de amor, ontem. Não em sala de aula (pensando bem, era sim uma sala de aula, no prédio da Faculdade de Ciências Sociais e Letras da Universidade de Taubaté). Mas sem professor (pensando bem, a sala estava repleta deles). E uísque, música, boa prosa e Pollyana. 
 
A escolha inusitada pela carreira de diplomata, os diversos amores, os filhos, a predileção pela bebida que ali tomávamos cor de gasolina, depois trocada pelo vinho, drible de Garrincha no diabetes. A morte na banheira, que chegou como um sono bom. Logo ela, a banheira, natal de tantas delícias. 
 
Quase hora do almoço, encaixo pedras de gelo no copo de bojo largo, completo com uísque. Queria vinho. Lembro da promessa que fiz à Zoraya: um belo disco a se ouvir com vinho. 
 
Perdoe-me, Zô. 
 
O momento clama por este manjar dos deuses. 
 
Há dias que eu não sei o que me passa, eu abro o meu Neruda e apago o sol. Misturo poesia com cachaça, e acabo discutindo futebol. Mas não tem nada, não, tenho o meu violão. 
 
Eu também. 
 
Fecho os olhos. 
 
Deixo o poetinha me levar. 
 
 
 
P.S.: 1. Obrigado a quem esteve no Trem Azul, em Taubaté, no lançamento do Vocabulário, e fez o dia deste autor mais feliz; gratidão. 2. Para adquirir um exemplar de Vocabulário de memórias ausentes, Editora Sinete, e só clicar   https://editorasinete.com.br/vocabulario-compre 3. Ilustração da crônica: arquivo pessoal.

Comentários

Jander Minesso disse…
Por essas e outras que alguém já disse que, sem música, a vida seria um erro. Sem vinho, também. Whisky eu já não sei, mas acho que também faria falta. Bela declaração de amor, Sergio.
Pollyana Gama disse…
Tão gostoso de ler! Por aqui estou com uma xícara de café… Vou imaginar que é um “cowboy” !
Zoraya Cesar disse…
Sergio, mais do que perdoado! Trocar um bom vinho por um bom uísque é mais do que válido! sinto-me lisonjeada em vc ter lembrado do meu pedido e da sua promessa. E nao poderia ficar mais satisfeita em ver que vc aproveitou de tudo em sua totalidade!
Ana Raja disse…
A vida é bem mais bonita com música!
sergio geia disse…
Obrigado, amigos. Com música e vinho/uísque, a vida fica mais leve. E se essa música for Vinicius então?
Tão gostoso ler seu texto, vou procurar o mesmo disco para ouvir. Sem o luxo do vinil, mas tudo bem… fico com sua descrição da capa! Viva a poesia, a música, os banhos de banheira e taças de vinho… pra ajudar a levar está vida que pode até ser doce, mas mole não e não…rs.
Soraya Jordão disse…
Uma crônica no tom da poesia. Adorei!
sergio geia disse…

Ouça, Amanda. E viva! Viva! Viva!

Sim, Soraya. Ao som do poetinha.

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