A GUARDIÃ DO CONDOMÍNIO >> Zoraya Cesar
O corredor era longo, mal e mal iluminado por uma luz branca e fria que dava, a cada uma das portas, uma aparência tumular. O papel de parede já fora primaveril, mas agora era apenas um cemitério de flores há muito fenecidas.
O prédio, velho e decrépito, como
todos seus moradores, tinha uma área interna, um pátio no centro, meio abandonado,
a grama esparsa e seca, os bancos capengas, duas mesas. As paredes cinza davam
ao pátio um certo ar de prisão. Alguns aproveitavam jogos de tabuleiro, outros
falavam dos tempos antigos, sonhavam com os novos, trocavam memórias, pontos de
crochê, comiam biscoitos, bebiam chá.
Estavam ali a esperar e, nessa espera,
se uniam para escapar da loucura, da solidão, da velhice, do abandono, das
dificuldades.
Mas era só tristeza? Não!
E tinha o melhor de tudo. Algo que
encantava as almas, que as fazia sair daquela realidade e sonhar, por algum
precioso, preciosíssimo tempo, com um advir melhor.
O pássaro. Sua penugem era rosa e
dourada, peito lilás e bico escarlate. Parecia um amanhecer. Pousava aqui,
pousava ali, brincava com os frequentadores. Ao final do dia, cantava. E seu
canto era diferente para cada um dos ouvintes. Romances, doçuras, despedidas,
uma receita de avó, um álbum de retratos, um passeio memorável, um primeiro beijo,
um último adeus... O que ouviam sempre trazia um alento, uma alegria, uma
esperança.
Sua cuidadora era a mesma velhinha mais velhinha responsável pelo cantinho florido do pátio. Já
Era de poucas, pouquíssimas, palavras.
Suas orelhas eram grandes, os lóbulos caídos de quem usara muitos brincos
pesados quando jovem. A pele, trigueira e enrugada, mas os olhos tinham o
brilho das estrelas. Nunca ficava doente, mas sempre tinha cura para tudo.
Menos para a Grande Dama Branca, que, segundo ela, não era doença, mas a cura absoluta.
Também nada podia contra os mal-intencionados.
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Sim, ou vocês estavam pensando que aquele lugar era uma espécie de retiro triste apenas para pessoas boas? Ah, estavam? Puxa, desculpem.
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Havia um morador que se irritava em
ver aquela velharia simplória se alegrar com bobagens que não modificariam seus
destinos. E ódio da cuidadora, uma cigana reles e enganadora, como todas as
ciganas, remoía-se. O canto do pássaro despertava-lhe amarguras ancestrais e
inveja da esperança alheia. Seu coração era terra árida e pedregosa.
Furtivo como uma raposa, tinhoso
como um demônio de baixo escalão e mau como um bafo de onça, uma madrugada ele
conseguiu matar o pássaro canoro encantador de almas gentis.
O dia seguinte foi terrível. Os
corredores ficaram mais escuros e assustadores. As flores desbotadas do papel
das paredes cheiravam a velório. As árvores perderam as folhas, os frutos azedaram.
Os moradores ficavam a mirar o nada, o olhar vago, em silêncio. Nada de biscoitos,
conversas, jogos. Só um peso enorme e sombrio a esmagar lentamente a vida que
lhes restava. Aos poucos, ninguém mais descia, ficavam todos trancados em suas
covas, apodrecendo.
E a velha cigana?
Não tinha mais tempo a perder com
choro nem vela, tendo perdido já tanta coisa na vida. Por isso aproveitou o
choro e as velas. E preparou sua vingança.
Suas dívidas já estavam pagas, podia
ter ido embora há bastante tempo. Mas passou a amar sua missão – dar um mínimo
de paz aos hóspedes encaminhados para aquele lugar, pessoas para as quais
ninguém rezava. Então, foi-lhe permitido
ficar indefinidamente até quando quisesse.
Ela daria um jeito de consertar
aquela tragédia, devolver a esperança àquelas pessoas.
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Numa manhã especialmente fria, plúmbea
e chuvosa, os moradores foram despertos por uma algazarra no pátio.
Apavoraram-se. Seria mais um revés?
Ah! Mas não!
No pátio, esvoaçava, feliz, um
casal de pássaros coloridos, as asas em tom azul anoitecer, salpicos de
estrelas por todo o corpo, bico púrpura. Cantavam, cantavam, cantavam. E, nos
galhos das árvores agora cheias de folhas, frutos e vida, um ninho com vários
ovinhos brilhantes, numa promessa de perpetuidade.
O dia, de repente, brilhou. Os moradores
exultaram. Uns distribuíam abraços, bolos, beijos, chás, todos com o coração
enlevado, a alma dançante. A esperança da salvação e a possibilidade de renovação
voltaram aos corações. Esqueceram a pobreza, o abandono, os arrependimentos, a
tristeza do fim. Ainda podia haver alegria. A espera podia ficar mais leve.
Pois aquela maldade não ficaria
impune. Aceitaria de bom grado perder alguma benesse. Era uma cigana, afinal - vinganças já tinham
sido seu prato preferido.
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O assassino foi enviado para outro
condomínio, muito longe da liberdade e redenção. E, com ele, a maldição da velha
cigana.
Pássaros o perseguiam por toda
parte, incessantemente, roubando comida de sua boca, enchendo seu copo de
penas, batendo as asas em seu rosto, cantando em seu ouvido dia e noite. Não podia
dormir, ou eles tentavam arrancar-lhe os olhos.
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Poderia finalizar dizendo que ele aprendeu sua lição, arrependeu-se e ganhou uma nova chance. Que a velha cigana foi punida a não partir livremente, por ter-se deixado levar pela vingança. Mas estaria mentindo. E esse não é um conto de fadas. Definitivamente.
Comentários
Os últimos contos foram bem pesados. De ruim já chega esse desgoverno que está e alimentado toda sorte de parasitas!
Isso é excelente para seus leitores!
Obrigado por compartilhar!
Anônimo - que não é anônimo kkkk Uai, o último conto foi do Dr. Marcio, mais leve, impossível.
branco - vc me deu a honra de esmiuçar as entrelinhas escondidas no texto e eu nao podia ficar mais feliz! Claro q cada um tem sua leitura, mas a sua foi igual à que eu tinha imaginado e intencionado.
Jander - Jander, ô, Jander... que comentário mais querido esse! "Nesga" tb é uma palavra maravilhosa. E lembrar dos Irmãos Grimm e de Hitchkock ao me ler me deixa nas nuvens! Nefelibata...
Erica - Amiga, acho q estou te contaminando... vc achou a história fofis!!! bem, 'se nao fosse a vingança eu nem te reconheceria'... isso é um elogio, certo? kkkkkkk
Albir - ah, nao sei se fico feliz por vc, finalmente, ler um conto meu sem ter de tomar calmante, ou triste, pelo mesmo motivo hahahahaha. E muito obrigada, Dom Albir, por esse elogio maravilhoso.
Márcio - Marcio, amigo, eu que agradeço!
A todos, muito obrigada! Fiquei muito feliz.