NATIMORTO>> SORAYA JORDÃO


 

O término de um relacionamento, quando motivado pela transmutação do sentimento inicial, é um processo delicado e doloroso para ambas as partes, embora quem tome a iniciativa de romper a relação ganhe a dianteira na digestão do fim. De todo modo, desamar é uma troca de pele sentida na alma seja por que motivo for. 

Quem recebe o comunicado de um despejo afetivo perde o chão, o rumo e a direção. Se deixar mágoa é ainda pior. Embora, convenhamos, esquecer alguém sem contar com o ressentimento para impulsionar a missão, é uma tarefa árdua. Mas o esperado é a superação.

Mais complexo é o que não termina, porque nunca existiu, mas é suposto latente em outro alguém. Nesses casos, o que se vê são tentativas diárias de ressuscitar o natimorto.

Por que é tão difícil aceitar o que não existe?

Quantas relações se estruturam na distorção dos fatos, na produção fantasiosa de sentido, na compreensão do inaceitável ou na naturalização do abuso?

Muitas vezes o fastio do outro é o que mata a nossa fome de amor. Por quê? 

Criamos teorias, equações escabrosas, explicações infinitas, desculpas piedosas e esfarrapadas para nos convencer de que o ser amado é aquele que imaginamos e não aquele que vivenciamos a duras penas.

Chega de criar histórias mirabolantes para preencher o vácuo de um amor que poderia ser, mas não foi.

Sejamos práticas, o sim não tem rodeios, cantoneira, eira ou beira. O Amor é um sujeito oferecido, extravagante, objetivo e competente. Não se arrasta, se esconde, se atrasa ou se acanha. 

Não se iludam. O Amor abocanha tudo que vê. Lambe os dedos e se refestela. Não carece de bula, manual, receita ou tutorial. Só existe onde se revela.

O amor é (f)ato,  não precisa de interpretação.  


Comentários

Clara Braga disse…
“Desamar é uma troca de pele sentida na alma” que lindo isso! Lindo texto!!
Ana Raja disse…
Adoro as sua metáforas, as escolhas das palavras e os seus finais. Que escrita boa de ler.
Soraya Jordão disse…
Clara, adorei saber que você gostou. Obrigada!
Soraya Jordão disse…
Ana, querida, eu adoro sua escrita-bordado.
Jander Minesso disse…
“ Por que é tão difícil aceitar o que não existe?” E porque também é tão difícil aceitar o não que existe, né? Bela (ainda que dolorosa) reflexão no seu texto, Soraya.
Zoraya Cesar disse…
"ganhe a dianteira na digestão do fim."
"Só existe onde se revela."

Que texto mais real e, ao mesmo tempo, suave. Você falou de Amor com maestria, o lado doloroso e o sublime. Amei suas frases. Me fez lembrar do "e por falar em amor", da Marina Colasanti, que salvou minha vida em um reino tão tão distante.
Soraya Jordão disse…
Jander, adorei a sua sacada. Sim. O não que existe…
Soraya Jordão disse…
Zoraya, a literatura já me salvou também. Fico orgulhosa que tenha gostado.

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