Histórias do meu pai: A alma penada do cemitério >>>> NÁDIA COLDEBELLA
Não sei se consigo passá-las com a mesma graça, mas ouvir meu pai contar histórias me rende boas gargalhadas. Essa que trago hoje é uma das antigas, que escuto desde minha adolescência, contada um sem número de vezes. Como de hábito, deixo claro que não sou a autora desse causo, mas sim, apenas uma ladrazinha com pretensões literárias.
Essa façanha acontece antes de eu nascer (bem antes, porque ainda sou uma jovem senhora) e o protagonista é um amigo do meu pai, que vou chamar de Eugênio. Naquela época, a cidadezinha em que ele morava era mais cidadezinha ainda, com casas de madeira, estradas de chão e uma população de hábitos bem mais modestos do que hoje em dia.
Seu Eugênio era um homem muito branco, de olhos bem claros, muito alto e um tanto esquálido. Os cabelos também eram bem claros e agora, que está velho, nem sei se chegaram a branquear. Era já um tanto abastado em suas posses, mas muito simples em seus hábitos. Tinha uma propriedade rural que distava cerca de 8 km do centro da cidade, e, embora dispusesse de automóvel, costumava fazer o trecho a pé ou de bicicleta. E esse percurso incluía passar por uma estrada de terra, que mais tarde constituiria-se em uma das avenidas locais. E, neste caminho, ele também passava pela entrada escancarada do cemitério local.
Depois de ouvir tantas vezes esta história, conclui que seu Eugênio é um homem bem pouco supersticioso e bem à vontade quando se trata de velórios, enterros, mortes e qualquer coisa relacionada, incluindo presságios, fantasmas, maldições e almas penadas. Essa é, com certeza, uma condição vantajosa apenas para uma minoria, já que a outra parte das pessoas alimenta uma desconfiança natural quando se trata de mortos e portas de cemitério à noite. (Entre estas pessoas, me enquadro. Eu, que gosto muito de histórias sobrenaturais, confesso ao leitor que morro de medo toda vez que escrevo uma).
Conclusões à parte, creio que seu Eugênio nunca tenha pensado muito sobre isso. Era um homem muito prático e isso se revelou verdadeiro em certo final de tarde, quando voltava apressado e a pé, fugindo de uma tempestade que ameaçadoramente se aproximava. Perto do cemitério, a chuva desabou em grossos pingos e, para se proteger, seu Eugênio correu, abrigando-se em um pequeno galpão de madeira, também a entrada da cidade dos pés juntos, destinado ao armazenamento de pás, cimentos, tijolos e outros apetrechos utilizados na construção dos túmulos.
- Naquela época ficava tudo aberto. Não tinha tanto ladrão como hoje - contou meu pai, justificando muito convenientemente o fato de seu Eugênio ter conseguido adentrar no galpãozinho.
A noite já caia e a chuva demorava-se. Seu Eugênio, paciente que era, foi para o fundo do galpão e sentou-se sobre alguns sacos de cimento. Distraia-se com seus pensamentos, mas seus devaneios foram interrompidos com a chegada de outra criatura. Uma pessoa. Era um homem gordinho, relativamente jovem, que vinha da cidade e seguia em direção ao campo - o caminho oposto ao do nosso protagonista. Vestia uma camisa, calça de trabalho, chapéu e botas. Estava molhado e mexia-se impaciente, permanecendo bem na soleira da porta, quase sendo molhado pela chuva.
Muito nervoso, ele não havia notado a presença de Seu Eugênio nos fundos do galpão. De quando em quando, o homem olhava para dentro do campo santo e seu corpo ficava rígido. O medo do homem era tanto, que o amigo de meu pai mexia-se o menos que podia, para não assustar ainda mais o pobre.
A chuva engrossara e a noite caía espessa. Seu Eugênio não via nem o próprio dedo dentro do galpãozinho, mas conseguia delimitar a figura do homem na porta, parcamente iluminada pela luz elétrica próxima. Uma coruja piou ao fundo, soturna. O homem, agitado, moveu-se, quase num espasmo, fazendo o sinal da cruz repetidas vezes, respiração ofegante. O vento sibilou e um galho da árvore bateu sobre o telhado do galpão. O homem deu um pulo, olhando para o lado de onde o som vinha, repetindo mais sinais da cruz e fazendo uma reza que parecia latim. Sua inquietude só aumentava e, nesta altura, imagino que seu Eugênio já conseguia ouvir o coração descompassado querendo fugir do peito.
A chuva não cedia. Cansado da posição em que se encontrava, seu Eugênio esticou cuidadosamente a perna, fazendo um leve barulho. O corpo do homem retesou-se, seus ombros se elevaram em pura tensão. Ele ficou em total alerta, mas não se mexeu, provavelmente considerando entre ficar com medo ou molhar-se naquela chuva gelada sem fim. Seu Eugênio permaneceu o mais quieto que pode, controlando, inclusive, a própria respiração. Após alguns segundos, o homem já não prestava mais atenção nos barulhos do galpão. Olhava fixamente para dentro da necrópole, quem sabe para certificar-se de que nem um morto levantaria do túmulo.
Ali, no escuro e quieto, seu Eugênio perdeu-se novamente nas próprias ideias e em alguns minutos, acabou esquecendo-se da presença do homem nervoso. E depois de pensar em lavoura, dinheiro, custos, filhos, esposa e todas essas coisas que imagino que pensasse, ele apelou para o hábito, para acalmar os pensamentos. Tirou do bolso da camisa o maço de cigarro. Colocou um cigarro na boca e guardou o maço no bolso. Tateou o bolso da calça e achou a caixa de fósforo. Agora, no escuro, precisou de uma certa perícia para retirar o fósforo da caixa. Apalpou a lateral da caixa, para medir bem seu tamanho. Com a mão esquerda segurou a caixa e com a outra, segurou o palito entre o dedo polegar e indicador, firmando-o na lateral da caixa. Então riscou o fósforo, que produziu uma chama amarelo-avermelhada e reluzente.
Só quando seu Eugênio elevou o fósforo ao cigarro que estava em sua boca, é que deu-se conta de dois olhos esbugalhados fixados nos seus. O homem tremia de cima a baixo, sem conseguir sair do lugar. O fósforo tremeluzente iluminou o rosto branco de seu Eugenio, lançando sombras fantasmagóricas e dançantes na escuridão. O rosto branco era a única coisa que aparecia para o homem! Todo o resto estava mergulhado na escuridão. Seu Eugênio era uma face branca, flutuante, fantasmagórica e fumante.
O amigo do meu pai bem que tentou abrir a boca, mas parece que foi pior. O pobre diabo já havia se atirado na chuva, em corrida desesperada:
- Aaaaaahhhh!!!!
Ao que parece, a bota do homem batendo contra o solo pode ser ouvida por vários minutos, tal era a força e a pressa com que ele fugia. O chapéu ficara na soleira da porta. Sem ter muito o que fazer e com a chuva ainda desabando, seu Eugênio sentou e fumou calmamente, conjecturando sobre o desatino humano. Quando a chuva cedeu, pouco depois e antes de sair, ele até pensou em levar o chapéu e devolvê-lo, mas logo desistiu. Não conseguia imaginar um modo de explicar a história ao homem sem assustá-lo novamente.
Encerro este engodo fantasmagórico aqui, esperando que minhas pernas parem de tremer, a fim de que possa contar novas-velhas histórias do meu pai.
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