AULA DE DESCRIÇÃO >> André Ferrer

 

Há um limite para as paixões humanas quando elas provêm dos sentimentos,

mas não há limite para aquelas que sofrem

a influência da imaginação.

 

Honoré de Balzac

 

A professora pendurou dois cartazes no quadro negro. Casa, riacho e cisnes. Um gato e o seu novelo de lã. O melhor acontecimento da tarde para Luiz Bernardo. Ele estava livre do “Arme e Efetue”.

Aliviado, guardou o caderno de aritmética. O suor da testa escorria para o outro lado, agora, por causa da inversão da cabeça. No próximo ano, de acordo com a sua mãe, ele voltaria ao período matutino. Fabrícia continuaria à tarde. Continuaria por causa da avó, que cuidava dela enquanto a mãe trabalhava. Segundo dissera, os afazeres domésticos rendiam mais para a velha, à tarde, com ela na escola. Ideia estranha, que começava a incomodar Luiz Bernardo.

A sensação que lhe tomava a cabeça também era estranha. O menino costumava ficar invertido até o “limite”. Depois, ele não sabia. Ele tinha medo de descobrir.

No fundo da sala, a imagem de Fabrícia paralisante. O contorno das coisas, devido ao “limite”, já começava a ficar embaçado. Em casa, uma vez, repreenderam-no com inesquecível energia. Perigo enorme se o sangue ocupasse a cabeça por tanto tempo! Ficaria roxo. Desmaiaria. Conforme lembrava, a reprimenda fora desagradável e ajudara-o a fixar o significado de uma porção de palavras.

IMAGEM: Stock Vault

Toda palavra impressionava-o quando nova. “Limite”, sem dúvida alguma, impressionava-o apesar de já ser uma palavra antiga. Era do ano anterior e a conhecera por causa de um trem que fazia manobras intermináveis e bloqueava o caminho da escola.

— Oh, menino! — Dissera o pai. — Entre no carro. É perigoso! Criança não tem limite. É como este trem a perder de vista...

Então era isso! O que determinava que se visse ou não o fim das coisas era o limite!

Gostaria de usar “limite” na descrição. Endireitando-se, procurou algum motivo para o emprego desejado. Inútil. Nem os pássaros nem a casa davam espaço àquela palavra. No cartaz ao lado, gato e seu novelo, tampouco. Luiz Bernardo adorava escrever. Sentia-se mais à vontade ao compor descrições a partir de figuras do que ao resolver problemas com números. Ele jamais encontrara dificuldade naquele tipo de exercício. Por isso, sentia-se mal. Estava frustrado. Ele não conseguia encontrar uma única frase pertinente às ilustrações na qual figurasse a palavra “limite”.

Olhou para trás e viu no alto da cabeça de Fabrícia como os fios escuros, brilhantes e emparelhados estavam perfeitamente repartidos. Naquele momento, a linda criança também escrevia. Mantinha a cabeça inclinada sobre o caderno.

Luiz Bernardo descobriu, assim, um emprego para a expressão “falta de limites”. O trabalho da mãe de Fabrícia e os argumentos da avó para que a menina continuasse no período vespertino, de fato, aumentavam aquele sentimento estranho, que era desconforto. A sensação de que alguém lhe segurava as costelas quando ele tentava respirar não tinha limites.

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Esta crônica faz parte do projeto Crônica de um ontem e foi publicada originalmente em 21 de janeiro de 2013.

Comentários

Jander Minesso disse…
Fiquei alguns minutos pensando em algum comentário com “limite”, mas desisti. Seu texto já deu conta do recado. Bonita narrativa, meu caro.
Zoraya Cesar disse…
que texto mais leve e poético, André! leve e, ao mesmo tempo, tem uma espécie de nostalgia sutil, um medo de ver o Luis Bernardo despertar para os limites da vida adulta e perder a imaginaçao.

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