Indiferença >> Alfonsina Salomão

 

Um homem sentado num banco de praça lendo jornal. Quase velho, quase careca, quase gordo. Os cabelos restantes são quase todos brancos e um par de óculos retangulares se equilibra na ponta do nariz. Está na idade em que os braços parecem ficar curtos, penso.

 

O dia está bonito, nem muito quente, nem muito frio. O sol da tarde ilumina o banco, reflete nas folhas da árvore cujos galhos compridos se balançam acima do homem. Um pombo faz cocô, a pasta branca cai ao seu lado. Ele continua a leitura, imperturbável. Me pergunto o que pode ser tão instigante. Normalmente não encontro nada que o valha nos jornais. Passo os olhos pelos títulos sangrentos, espio as fotografias traumatizantes, leio com ceticismo o horóscopo do dia e busco sorrir quando chego aos quadrinhos. Então fecho a página e ponho o jornal de lado, ranzinza, insatisfeita com a perda de tempo.

 

A postura do homem é tão diferente que não resisto: passo por trás do banco e tento ler por cima dos seus ombros. Não distingo nada. Eu também estou ficando velha, minha vista não é mais a mesma. Espio rápido demais para dar sentido aos títulos e imagens. O pudor vence a curiosidade, me afasto.  

 

De toda forma, pouco importa. O homem segue lendo, o sol iluminando, os pombos lançando cocôs esbranquiçados. Dentre em pouco vai escurecer, como todos os dias. O homem, mais cedo ou mais tarde, vai deixar sua leitura, voltar para casa, comer, escovar os dentes, deitar na cama e fechar os olhos, como todos nós. Os acontecimentos prosseguirão seu círculo vicioso: guerras, assassinatos, desastres ecológicos, escândalos de corrupção, celebridades casando e desquitando. Em meio a tudo isso, eu, cada dia com menos paciência para o mundo, continuarei invejando homens como este, capazes de se interessar pelos escritos dos jornais.

Comentários

Ah, a beleza das crônicas mais simples... Grato pelo passeio, Alfonsina. :)
Zoraya Cesar disse…
Alfonsina dando uma espiada em um estilo diferente e se sentindo à vontade, nos presenteando com uma crônica de alto nível! Amei!

"Je kiffe ton style" (copiei, deve estar errado, claro hahahah)
Nadia Coldebella disse…
Uma vida cheirando um pouco de normalidade, seja qual normal for! Adorei o texto, muito bom de ler.

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