SERENDIPIDADE >>>Nádia Coldebella

 Quando você olha o veludo azul que cobre sua cabeça todos os dias, nem imagina que ali se encontra um fino véu, trançado e opaco, que pode ser facilmente rasgado. Eu era criancinha ainda e esticava minha mãozinha para o céu, tentando modelar as nuvens de algodão. Nunca acreditei quando diziam que o que estava lá era inalcançável. Nunca desisti de levantar minhas mãos, pois o céu estava ali, ao alcance delas”. 

 A jovem Aislin levantou os olhos do diário, pensativa. O livro parecia ser muito antigo. Tinha as páginas amareladas e era encapado com uma espécie de couro velho. Na capa estava escrito seu nome em letras grandes e douradas e, embaixo dele, a palavra sonho, que era o significado desse nome excêntrico escolhido por sua mãe. 

Ela não sabia como o diário chegara às suas mãos, apenas acordou pela manhã e ele estava ali, perto da caixinha de música que ganhara no aniversário de sete anos. Como uma coisa esquecida que ao lembrar percebemos que sempre esteve ao nosso alcance, Aislin sabia que o diário sempre estivera ali.

“Eu era tão pequenina e me lembro de tudo como se fosse hoje. Talvez seja hoje, porque o tempo é um ciclo constante que se repete. Não importa o quanto você ande. Andará sobre o mesmo solo e acabará no mesmo lugar”. 

As palavras escritas em uma linda caligrafia soavam como memórias. Parece que eu mesmo as escrevi há muito tempo, pensou, mas não em um tempo tão distante assim. 

O tic-tac do relógio interrompeu o dejavú. Ela fechou o diário e dirigiu-se até a janela do quarto, apoiou os cotovelos no parapeito e observou o céu índigo, que desdobrava-se, imenso, a sua frente. Como um veludo azul, ela pensou. É certo que estava escrito no diário, mas esse pensamento era seu, sempre havia sido. Estivera na sua cabeça desde quando a mãe a havia levado até a loja para escolher o tecido para o vestidinho da apresentação da escola e ela viu aquele veludo, azul, índigo, profundo e se apaixonou por ele, porque ele parecia o céu. O vestido não seria feito dele, disse a mãe, mas a menina foi tão tenaz na sua insistência que a mãe não teve outra saída senão comprar um pedaço e dar de presente à garotinha. 

Aislin foi acrescentando ao pano pequenos girassoizinhos que ela mesma desenhava. Com o tempo, figuras de pássaros e anjos, pequenos objetos, folhas, galhinhos, sementes, flores secas, qualquer coisa que contrastasse com aquele azul, foram juntadas ao tecido. Mas o elemento mais bonito era uma pena branca, que um dia entrou flutuando pela janela do quarto e pousou sobre sua cama. A peninha finalizou a obra e seu pai, encantado com a criatividade da criança, mandou emoldurá-la e a garota pendurou o quadro no seu quarto.

Ela virou-se e pode observá-lo na parede, singular como sempre, mas a pena branca não estava lá. Em seu lugar havia uma pequenina flor que ela não lembrava-se de ter colhido. Muito estranho, pensou, enquanto voltava para a janela.

Olhou em direção ao firmamento e a viu, alvíssima, contrastando com o azul da imensidão e flutuando em sua direção. Aislin levantou a mão para pegá-la, mas não conseguiu. Como numa dança, a pena desviava-se dela. Frustrada, baixou os braços. 

A pena flutuou calmamente em sua direção, pousando sobre sua fronte. Ela sentiu como se dedos estivessem pressionando sua testa e uma vertigem agradável a afetou. De olhos semicerrados, levantou a ponta do queixo aos céus, deixando a cabeça pender para trás. Seu corpo pendia de um lado e do outro e, repentinamente, pareceu perder o peso, querendo elevar-se. Uma brisa acariciou-lhe a pele e palavras que não entendia pareciam estar sendo sussurradas em seus ouvidos. Com o corpo trêmulo, sentiu um desejo quase incontrolável de chorar, mas os soluços não ultrapassaram sua garganta. Então, seu coração foi preenchido por um forte estado de paz. Eu queria ficar assim para sempre, pensou.

Aislin fechou os olhos com força, esperando que o tempo parasse e que aquela sensação se prolongasse pela eternidade - mas, por causa deste movimento, de fechar os olhos, descobriu que o tempo é fugaz e impiedoso. Logo o êxtase cedeu lugar à impressão de um toque sobre sua testa e de um sussurro em seus ouvidos. 

Quando abriu os olhos, percebeu a pena branca pousada no batente da janela. Aislin recolheu-a com o cuidado que dispensaria a uma preciosa relíquia e resolveu guardá-la na caixinha de música. Ali estava a linda bailarina, pronta para rodopiar ao som da música que conhecia tão bem. Deu corda e começou a cantarolar junto, tentando prolongar a enorme paz que sentia, mas a música era outra, bela e completamente desconhecida. Os olhos de Aislin arregalaram-se, o maxilar entreabriu-se e ela emitiu um som de espanto. Deixou a pena desajeitadamente dentro da caixinha e abriu o diário, folheando as páginas a esmo:

 “Pretendo dormir agora, e por isso escrevo nesse diário. Deixo-o perto da caixinha de música, para que você o encontre amanhã. Você irá crescer, mas espero que você se lembre de que este veludo azul que todos os dias cobre a sua cabeça é um fino véu trançado e opaco. Ele já foi rasgado uma vez para mim e quando estiquei minhas mãozinhas, quando ainda era você, toquei o inalcançável”.





Comentários

Zoraya Cesar disse…
que texto BELÍSSIMO, meigo, envolvente, Countess. mágico. para elevar nossa alma. nem sei dizer o qto gostei! sem falar na excel~encia do texto, né?
Albir disse…
Versatilidade é isso, Condessa!
Você assombra com alguns personagens e encanta com outros.
Poderia dizer que você morde e assopra. E eu gosto!

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