O VELHO CANTOR >> Sergio Geia
O gancho emborrachado do apoio o envolve com firmeza. Seu olhar, vejo, está na parede do quarto, parece um pouco confuso. São anos que não o retira de lá. Não há mais tempo, justifica-se. Miúdo, sequer alcança as atividades do dia. E quando está em casa, já livre do trabalho da construção, a última coisa em que pensa é nele.
Mas às vezes, no escuro, em meio ao sono atribulado, ele se pega procurando na parede do quarto a sombra do violão, é quando bate as saudades de um tempo em que andavam juntos.
Indeciso ainda, talvez atiçado pelo álcool, ele enfim arrisca retirá-lo da parede, o toma pelas mãos, percebemos o enorme cuidado no gesto. Há uma lâmina grossa de poeira pelo desuso. Ele encosta os dedos no cavalete, no rastilho, parece admirá-lo. Depois toca o braço, um a um os trastes, torce as tarraxas, sente o movimento. Em seguida o nylon, desliza o dedo indicador suavemente na horizontal. Nota a ausência da corda ré, mas não importa. Tomado de emoção, ele respira fundo. Então faz o movimento de descer o polegar pela boca do instrumento, de mi bordão a mi prima; assusta-se com o desafino.
Sem titubeios, com a experiência de noites de cantador, ele toma posse das tarraxas, espera que técnica e ouvido não tenham sumido diante do tempo que passou. O girar é duro, quase entravado, há nítida ferrugem acumulada, mas ainda assim não desiste, quer a melhor afinação, diz, ainda que cordas velhas atrapalhem.
Experimenta lá menor, depois mi menor, e ré menor. Mentalmente, ensaia o canto, enquanto tenta recuperar os acordes. Até que preparado, ainda que a plateia seja de poucos amigos, ainda que as mãos estejam trêmulas e indecisas, eu o vejo soltar o vozeirão:
Índia, seus cabelos nos ombros caídos
Negros como a noite que não tem luar...
Seus lábios de rosas para mim sorrindo
E a doce meiguice desse seu olhar...
Seus olhos brilham de emoção.
Os meus, testemunhas de um momento sublime, também.
Ilustração: Pixabay
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