O ENCANTAMENTO DOS MORTOS - 1a parte >> Zoraya Cesar
A mulher ajoelhada aos pés da tumba derretia-se em lágrimas. Observadores silenciosos aguardavam, ansiosos, seu desfalecimento quase iminente, para satisfazerem seu apetite voraz. A chuva intermitente e cada vez mais pesada amolecia a terra, fazendo vir à tona os comedores de carne ali enterrada. A vida vive da morte, e a vida tem pressa. Alguns desses seres, mais audaciosos - ou mais famintos - mordiscaram o corpo vivo da mulher, timidamente, em princípio, como se a testar se o festim estava liberado.
Uma mordida mais forte a despertou de seu abismo. Furiosa por ter sido interrompida em sua dor, ela pisou em alguns insetos, pegou uns tantos vermes e esmagou-os com as mãos, espalhando-os pelo chão – comam-se uns aos outros, resmungou. Depois arrependeu-se. Vivos, poderiam valer alguma coisa, uma poção, um pequeno favor, quem sabe? Havia muitas bruxas e feiticeiros idosos que não tinham mais paciência ou vigor para ir a cemitérios catar criaturas rastejantes necrófagas.
A mulher resolveu ir embora. A tormenta tornava-se perigosa e ficar ali não traria Mrtav de volta. Que morte estúpida, uma briga por causa de cavalos. Pior, com sua própria faca mágica Sixir. Sempre disseram que suas paixões desenfreadas o levariam à ruína. Mas ela não se importava e o amara assim mesmo, o intenso, luxurioso, Mrtav. A vida era pequena para ele.
E ela ficaria sozinha, sem seu Mrtav, suas bebedeiras, sua risada estrondosa, seu ardor, sua ladinice, sua sexualidade de sátiro, sua doçura e alegria. Um cigano enorme e exuberante que a amara como nenhum outro. O Conselho dos Clãs decidira que o oponente agira em legítima defesa frente à provocação de Mrtav. Nem o prazer da vingança ela teria.
Ulaan foi embora, afogada em pesar. Por enquanto só podia chorar. Até o 9º dia após a morte, o corpo não seria conspurcado, mas, após esse período, os comensais da morte poderiam, enfim, devorá-lo, reiniciando o ciclo da vida. Durante esse período, Mrtav seria um morto-vivo sem nome ou identidade na lápide, sem direito a seus objetos preciosos em vida enterrados com ele. Seria nada. Uma ambiguidade fantasmagórica a esperar os rituais de passagem para que seu espírito fosse julgado, encontrasse seu destino e seguisse seu caminho. O pior dos mundos.
Mrtav estava morto. Mas talvez não bem morto. O 9º dia ainda não chegara, talvez ainda houvesse algum tempo. Ademais, sua vida fora tirada por ferimento causado pela própria arma, e facas Sixi não tinham permissão para matar seus donos. (Os anciãos dos Clãs explicaram que isso só era verdadeiro se o dono fosse honrado, e Mrtav há muito deixara a dignidade para trás. Mas ela não acreditava nisso. Aqueles velhos costumavam mentir quando conveniente).
Ela não faria o ritual de passagem de Mrtav para o Eterno ainda. Procuraria alguém que pudesse ajudá-la. Não importava o preço.
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Ao redor da casa caiada de branco não havia flores ou ervas, insetos ou animais. Só se ouvia um lúgubre assovio de vento por entre os bambus. Ali, o tempo e a vida pareciam não ter existência.
Dentro, paredes cobertas de musgo negro. A umidade fez Ulaan tremer de frio. Sentada à mesa num canto da sala, uma mulher vestida tão de branco quanto a cal que recobria a casa. Era magra, ossuda, até. Tinha as mãos finas e elegantes, as unhas cobertas pelo mesmo limo das paredes. Lisos cabelos louro-dourado desciam até a cintura. Na semiescuridão da sala e através da tênue névoa que a cercava parecia jovem e bonita. Os olhos cor de limo emitiam um fulgor estranho e extremamente perturbador, mesmo para Ulaan, acostumada ao convívio com bruxas e outros tipos de encantadores.
Jamais estivera ali. A Sra. Branca-Nyeupe só era procurada em casos excepcionais de magia negra. Ninguém confessava ter utilizado seus serviços. Pois nunca era para coisa boa. Nunca.
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- Trazer um morto de volta… você sabe o que está pedindo? Sabe o que isso custará às suas almas? Todos temos nosso tempo aqui.
Ulaan não sabia e não queria saber. Só queria Mrtav de volta. Pagaria o que fosse necessário. Quanto ou o que seria, perguntou.
- Direi depois. Aceite sem questionar ou vá embora.
Por alguns segundos algo em sua mente gritou ‘foge’. Mas seu coração partido e inconformado ordenou ‘fica’. Ulaan ficou.
Chorava sem perceber, até se dar conta que algumas mariposas do líquen, pousadas em seu rosto, bebiam-lhe as lágrimas. Repugnada, fez menção de afastá-las, mas a bruxa impediu-a, com um enérgico gesto. Ulaan, paralisada, via os insetos caírem sobre a mesa, empapuçados e pesados.
- Só vou perguntar uma vez: vai querer trazer seu amado do limbo? Não vai fazer o ritual da passagem para o Eterno? Depois de concordar, você estará comprometida comigo, com ele e com os Espíritos. Preste atenção. O Tríplice Acordo é um caminho sem volta.
- Mas então realmente é possível? Trazer Mrtav de volta? Pra mim?
A Sra Branca-Nyeupe sorriu. As mariposas batiam molemente suas asas, numa tentativa flébil e inútil de levantar voo. A bruxa pegou algumas e estalou-as entre os dentes.
- Sim.
- Então traga-o. - Ulaan selou sua sorte.
Continua dia 15 de outubro a 2a e última parte. Não se aborreçam, por favor. Afinal, trazer um fantasma em corpo vivo é difícil e demorado.
Comentários
Eu não aprendo! Não posso nem criticar a Ulaan.
Anota aí, Zoraya: a Branca-Nyeupe, fura-olho vocacional, vai trazer o Mrtav de volta, mas vai fazer a dança do acasalamento (baixo-ventre total) e assim o roubará dos braços da Ulaan.
Duas semanas depois, invocará o Código de Defesa do Consumidor para devolvê-lo à Ulaan, alegando vício redibitório do produto, pois aquele macho tóxico sequer lavava a louça depois das refeições, e roncava feito um porco durante a noite.
Ulaan, contudo, naquele momento já terá descoberto que sua sexualidade é não-binária, e matará Mrtav por todo o sempre, de modo definitivo, e acabará desposando Branca-Nyeupe (sem compromissos, porque nenhuma delas é careta nesse aspecto).
Mas eu sei que a Zoraya vai escrever algo completamente diferente disso, para manter aquele esquema das bolsas de apostas londrinas que já colocou a Scotland Yard nos calcanhares da minha autora favorita.
Gostei muito das repetições (aquele pequeno e genial truque que você usa nos nomes).
Está cumprindo e muito bem seu conto, aguardemos.
Nyeupe
Anônimo - com certeza, se algo difícil parece fácil, é como dizem: esmola demais...
Érica: mexer com o mundo dos mortos a gente pode até relevar, há várias pessoas (vide Lucrécio Lucas) que trabalham pelo Bem com eles. Agora, mexer com o mundo dos mortos em interesse próprio e inadequado... problemão! e desconfio q vc pode estar certa.
Marcio - depois de rir muito de seu comentário, tenho a dizer 3 coisas: o final q vc deu é um final possível, como todos os finais q ainda nao chegaram ao fim; sou uma boa pessoa, em bons termos com a Scotland Yard e outras polícias. Sou como a filha da Chiquita Bacana, nunca entro em cana pq sou família demais. E, por fim: obrigada!
branco: My dear Lord, vc, como sempre, mais esperto q sua delicadeza e lirismo nos fazem suspeitar. Por favor, guarde segredo da sua descoberta!
Albir: Dom Albir, vc está certíssimo, como a Ana e a Erica. Mas o coração partido nunca foi bom conselheiro.