DE COMO ENGANAR O COELHO >> André Ferrer
Boa parte de 2018 e todo o ano de 2019 foram, para mim, algo como uma caverna. Regressar à luz, portanto, tem sido uma experiência entre delicada e reveladora. Mais ou menos como reza o famoso mito.
Anos depois de Platão, Lewis Carroll (1832-1898) iniciou a sua obra-prima com uma espécie de revés do Mito da Caverna e eu pensava exatamente nessa “chave de compreensão vital” durante a minha caminhada, numa recente manhã.
Enquanto eu cruzava a velha praça do Santuário de Santa Terezinha, o coelho branco passou por mim, apressado e nocivo. Acudi-me, felizmente, a tempo de ignorá-lo. Vi-o contornar a estátua do Frei Max e respirei fundo, atemorizado. Assim que o malandro ganhou a ladeira dos Correios e desapareceu, tranquilizei-me.
Hoje, grande parte do processo de recuperação consiste nesse jogo peripatético matinal; caminhadas devidamente assistidas, é claro, porque o pânico ainda pode me interromper na saída de casa. Um metro de calçada por dia. Um quarteirão hoje. Dois amanhã. São estágios que, meses atrás, quando o único recurso estava nas cartelas e nos frascos, pareciam distantes; inacessíveis, às vezes, para alguém que enxergava uma grande ameaça num simples feixe de Sol, lá fora, no asfalto.
“Veja aquilo!”, disse eu entre um passo e outro. Logo, a minha companhia virou o rosto para o outro lado da rua. Tão versada, vale dizer, quanto eu nos usos e costumes locais. “Ora”, expliquei. “Parecem os mesmos cachaceiros, neste mesmo horário, de quando eu costumava seguir para a escola nos anos de 1980.”
Passávamos, então, por um daqueles pontos intocáveis, que são ocupados por construções testemunhais onde, em qualquer cidade do mundo, funcionam bares tão velhos quanto a necrópole ou a plataforma ferroviária. Especialmente bem-humorada, a minha companhia respondeu: “Não! São os mesmos da época em que ‘eu’ era estudante, ou seja, nos anos de 1960.”
Rimos.
Foi quando eu tive o “insight” e toda aquela história de Filosofia e País das Maravilhas, de fato, delineou-se na minha mente. Admiti: “O que afasta o coelho, em grande parte, é esta cidade!” Não apenas por causa da sensação de paz - ou, mesmo, de imobilidade -, que toda cidadezinha interiorana causa, mas porque eu conhecia os detalhes daquela manifestação naturalmente ansiolítica da vida. No final das contas, aquela era a minha cidade natal.
Muito antes do coelho, eu tinha cruzado a praça da igreja. Tinha descido até a plataforma do trem onde as lembranças dos idosos deságuam. O Frei Max, em carne e osso, já tinha resmungado, sob o seu guarda-sol, enquanto abordava eu e a minha mãe para, segundo o seu lendário costume, benzer a pequena criança. Muito antes da caverna, eu tinha sentado na fachada do Colégio Franciscano Santa Isabel, num dia de chuva qualquer, após as aulas, e tinha observado a enxurrada descer na direção da praça da estação, cheia dos seus barquinhos vagarosos, folhas, copinhos e caixinhas enfileiradas e ondulantes, enquanto eu aguardava que algum adulto me resgatasse do tempo das velhas chuvas. O tempo dos meninos eternos.
“De fato”, eu disse comigo mesmo. “Existe remédio nessas masmorras e não apenas fantasmas! Há cura. O antídoto capaz de quebrar o maldito relógio do coelho branco, enfim, também está nessas distâncias profundas.”
Eu sei que não é tão simples. Além dessa capacidade interna ligada à percepção do tempo, é necessário ter coragem e, de vez em quando, meter-se naquele buraco a fim de empreender uma boa faxina. De fato, certos fantasmas vivem escondidos em lugares que passamos a vida ignorando... Então, o perigoso acúmulo acontece. O coelho surge. Temos tanta pressa quanto o miserável. E… Já era.
Cedo ou tarde, todos nós precisamos entrar na escura e apertada câmara que é a nossa verdadeira manifestação, neste mundo, como seres humanos. Ignorá-la é ter que enfrentá-la algum dia só que de um modo compulsório, apressado e despreparado. Sendo assim, antes de qualquer urgência, é sempre bom termos alguma ideia, mesmo que incompleta, do que nos espera lá dentro.
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