NEVE NEGRA - ULTIMA PARTE>>> Nádia Coldebella

PACTO DE SANGUE


"E perdeu-se em seus devaneios. Ela não viu a sombra que se aproximava, invisível aos olhos dos mortais. Mas entregou-se totalmente, ansiando pelo que a escuridão lhe traria"


Os primeiros raios de sol despontavam no horizonte quando Elora abriu o portal entre as árvores. Seus pés, quase flutuantes e etéreos, tocaram de leve o orvalho do solo. Seu corpo era delgado, translúcido. As vezes, conforme a posição que tomava, resplandecia. Ela agora abria as mãos para sentir melhor a luz que a fortalecia e a alimentava. A coroa em sua cabeça brilhou e raios coloridos, invisíveis aos olhos humanos, banharam as plantinhas nos arredores. 

A um movimento de suas mãos, uma brisa suave se formou, movendo lentamente as folhas das árvores, que pareciam dançar ao som de uma divertida canção. Fez outro movimento e algumas pedras flutuaram, como folhas levadas pelo vento, constituindo, no chão, uma espécie de tablado, para o centro do qual a rainha dos silfos caminhou mansamente.

Pouco depois, uma a uma, outras trinta e seis fadas saíram do portal. Elas carregavam grandes pedras em uma mão e lanternas em outra. Postaram-se, em um círculo perfeito, colocando as pedras no chão, logo a frente de si, e as lanternas sobre elas.

Elora não queria estar ali, mas sabia que o rei daquelas terras a procurava. Ele a percebera, certa vez, quando saíra para uma cavalgada matutina, mas ela dissolvera-se no ar, deixando-o confuso. Ainda não entendia como era possível que aquele humano a percebesse, mas sabia que, quando uma fada era vista por um mortal, seu destino era selado e o destino do mortal era alterado: ambos os corações eram entregues a uma ardente paixão, que, não satisfeita, consumiria a vida da fada. O humano talvez enlouquecesse.

Desde aquele dia, ele vinha todas as manhãs, procurando-a. Ela se ocultava todas as vezes, a paixão queimando-lhe as entranhas. Mas a dor de ser consumida por um fogo tão devorador logo seria deixada para traz. Naquele dia, despiria para sempre a roupagem de ser elemental.

A rainha-fada deitou-se no centro do círculo, tomando o cuidado para espalhar os longos cabelos pretos sobre as pedras. Olhava para as irmãs e as fadas a olhavam. Estavam mudas e pesarosas. Choravam. Elora também chorou, um choro amargo de quem lamenta o próprio destino. E ela permaneceu chorando, por um tempo eterno. Quando os raios de sol passaram por entre as árvores, colorindo de dourado sua pele alva, um cavalgar se ouviu ao longe. As fadas acenderam as lanternas e, aos olhos de Elora, tudo escureceu. 

O rei a achou estirada nas pedras, inconsciente e nua, com seus cabelos longos e negros espalhados como um halo de santidade. Contemplou-a por longos minutos embevecido pela magnifica visão. Uma urgência de protegê-la gritou em seu peito. Ele retirou a capa negra forrada de veludo vermelho e, cobrindo-a, recolheu-a e levou-a até o palácio. Dias depois, casaram-se. E por muitos anos foram felizes.

Até certa manhã.

Durante um passeio pelo jardim, a rainha sentara-se aos pés da fonte, ansiosa pela visão de sua terra natal, que volta ou outra era providenciada por um irmão elemental amado. Mas naquele dia, o que desvelou-se foram os olhos celestiais de Angèlle Lefreve, o destino alterado do rei. As moiras haviam brincado com seus teares e a feiticeira em breve chegaria para reclamar seu lugar de direito.

 E nada havia que a prendesse a Rainha Elora ao rei. Pelas leis locais, ele poderia repudiá-la,  pois um filho não era algo que uma fada poderia dar a um mortal. E ela seria consumida, mas mais que isso, perderia o que lhe era mais precioso, o amor daquele mortal.

Por dias lutou, mas entendeu que a unica solução era a que lhe era negada. E quando o inverno chegou rigoroso, prenunciando a dor inevitável, ela postou-se em frente a grande janela do quarto e conjurou a escuridão e tudo o que nela houvesse. Entregaria sua alma elemental às trevas para que um filho de seu amado nascesse. Para que a certeza da perda retirasse as garras que havia cravado em seu coração. 

Ela entregou-se, em devaneios febris, a toda espécie de pacto que poderia se entregar. A feiticeira usou todo seu conhecimento para libertar a monarca, mas viu-se enredada pela devoção do rei. Apesar disso, tudo ia bem até aquela manhã de inverno, em que Angèlle, tomada pela sua própria escuridão, cegamente estendera a agulha à Elora. Ela não se recordava daquele momento, estivera cega por tempo suficiente para que a rainha consumasse o pacto, derramando seu sangue sobre a neve. 



Os primeiros raios de sol despontavam no horizonte quando a princesa Anand retornou ao castelo. Voltou pelo mesmo caminho, sorrateira como saíra. Entrou no quarto, retirou a capa e a guardou-a em um grande baú que ficava perto da cama. Escondeu o pergaminho sob o travesseiro e em seguida, recolocou, com cuidado, o espelho na parede. A bolsa com as maçãs fora deixada na mesa perto da cama. Ali também havia uma tina de água, que usou para se limpar. Secou-se. vestiu uma camisola e deitou-se, caindo logo em sono profundo. 

Meia hora depois, a criada bateu suavemente a porta. Geralmente a princesa já estaria acordada e, como de hábito, pediria auxílio. Entrou  e, ao se deparar com a moça dormindo, foi tomada de grande espanto. A beleza de Anand parecia ter crescido de tal forma, que a criada ficou ali, extasiada, esquecendo-se completamente de que a rainha mandara chamá-la.

O sol ia alto quando a Rainha Angèlle, muito inquieta, veio pessoalmente vê-la. As cortinas da grande janela ainda estavam fechadas.Com urgência de dissolver a penumbra, resolveu abri-la, tomando o cuidado de desviar os olhos do espelho. A princesa remexeu-se e, por um momento, parecia quase resplandecente, quase translúcida, extremamente bela de uma forma quase sinistra.

Angèlle aproximou-se da princesa e tocou-lhe a face. Percebeu que um pedaço do pergaminho saia de sob o travesseiro e logo reconheceu seu conteúdo. Horrorizada, deu dois passos para trás, sentando-se elegantemente estarrecida em uma cadeira. 

A princesa abriu os olhos calmamente e contemplou-a. Esticou-se bem devagar, como os gatos fazem. Estendeu lentamente as mãos e alcançou a sacola repleta de maçãs. Ao serem tocadas, algumas maçãs secaram e desfizeram-se em pó bem diante dos olhos da feiticeira.

Anand levantou-se da cama, segurando na mão uma das maçãs saudáveis. Foi até o espelho e contemplou-se, sorrindo meigamente:

- Ó espelho meu, há neste mundo mulher mais bela do que esta que se reflete em ti?

Em seguida, voltou-se para a Angèlle, que agora, de pé e alerta, a observava, atônita. Estendeu-lhe a mão em que carregava a fruta:

- Aceita uma maçã, ma-mãe?





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Créditos:

arte: DeviantArt - https://www.deviantart.com/aramisdream/art/Dark-Snow-752770849


Você precisa saber que:

*Anand é o outro nome, de origem celta, dado a Morrigan, deusa celta da morte. Veja aqui.

* Elora é um nome, possivelmente de origem celta, que significa rainha das fadas. 

* Esternuto significa espirro. Um nome macabro que encontrei para Atchim. Madorno significa cochilo, sonolência; uma palavra que soa mal para apresentar o Soneca.

* Angèlle Lefreve é um dos nomes de uma feiticeira inventada num exercício do Terapia da Palavra. Acompanha essa autora em muitas histórias, em tempos muito distantes entre si (talvez um alter ego dessa autora). Não a julguem, vocês nada sabem sobre ela ou sobre o que ela consegue ver. Garanto que suas ações são justificadas.

* Contos de fada não são nada bonitos na sua origem. Essa fofura toda é invenção da Disney (Sim, eu acho a Branca de Neve muito tonta). Você pode saber mais aqui.

Tenho  muito a contar sobre a origem dessa Rainha Má. Poderia contar quando ela quase mata a feiticeira, quando toma o lugar do pai, quando descobre o segredo da fonte, quando mergulha no espelho e quando conhece o pai de Branca de Neve, a tonta, a única que sabe-se lá porque, poderia realmente ameaçá-la. Mas fiquei com medo, pois essa rainha Má é bem sinistra. Quem sabe um dia eu conte num texto aqui, outro ali, mais um acolá. alguma outra coisa? 

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Conheça toda a história












Comentários

Zoraya Cesar disse…
Nádia, ainda bem q só te leio durante o dia.
Essa história é sensacional. O que é belo é mau, o mal nem sempre está onde esperamos, e os homens sáo uns tontos insignificantes, sempre movidos çelos seus próprios desejos despertados pela beleza das mulheres, mas com uma pitada de amor aqui e ali. O sombrio das almas.

Mas, 'sentando-se elegantemente estarrecida em uma cadeira. ' foi ótimo!!! eu vi a cena!
Albir disse…
Bem, Nádia, agora fiquei escravo do medo e já não posso viver sem ele. Por favor, que venha logo outra história tenebrosa.
Lembrei agora de uma piada antiga que perguntava qual o cúmulo do sadismo. E respondia: é quando o masoquista suplica: "me bate, me xinga, me maltrata!" e o sádico responde: "não!"
Paulo Barguil disse…
Uma fascinante história com muitos segredos não revelados! Gostei demais, Nádia!

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