MAIS REAL QUE O REI - final >> Albir José Inácio da Silva
(Continuação de 17/05/2021)
No emprego seguinte encontrei mais uma história que reputo de moral parecida com a primeira. Ainda nos anos setenta, o palco foi um ambulatório de psiquiatria do INAMPS, recepção às oito horas da manhã, ou seja, o caos.
- Tá bom! O senhor é o presidente e eu sou a rainha Elizabeth! – reagiu Nanci, percebendo o perigo.
Aquele paciente chegou às oito da manhã, quando tudo ainda estava calmo e ela sorridente, se não para os usuários, pelo menos para os colegas.
- Próximo! – era ele - Qual o problema?
- Bom dia! – ele disse e, sem resposta, acrescentou:
- Eu queria uma consulta porque eu ando muito nervoso.
- Todo mundo aqui anda nervoso, meu senhor. Seu nome?
- João da Silva – ele improvisou, ela escreveu e ordenou:
- Aguarda a chamada.
- Vai demorar?
- Além de nervoso o senhor está com pressa? Próximo! – chamou.
Duas horas depois ele foi ao banheiro e na volta reclamou com ela:
- Dona Nanci – leu no crachá o nome da chefe da recepção - o banheiro está imundo!
- Vovô, eu não uso esse banheiro não! Quem faz imundície são vocês! Agora vai sentar que o senhor está atrapalhando a passagem! – e virou as costas.
Ele ia explodir, mas se controlou, queria saber até onde ia a negligência.
- Isso não são modos de tratar os que pagam o seu salário. Vocês são funcionários públicos, sabe o que isso quer dizer? Isso aqui está uma bagunça! Pessoas esperando há horas, bebedouro seco, o banheiro imundo e a senhora se acha no direito de tripudiar em cima dos pacientes! A senhora não está fazendo favor nenhum não, é direito do segurado!
- Já disse pra sentar e se acalmar! Se continuar agitando, vou acabar pedindo tratamento “urgente” pro senhor! – disse Nanci, fazendo aspas com os dedos ao pronunciar a palavra “urgente”.
- Você é muito abusada, mocinha! Agora chega! Eu sou o presidente! – disse, batendo o punho no balcão. Procurou a identificação, mas a carteira ficou no paletó.
Nanci não se abalava com aquelas cenas. Acostumada a receber ali presidentes, napoleões, neros e outros personagens históricos, ela administrava com profissionalismo as situações. Às vezes falando mais forte para intimidar, outras falando mansinho para acalmar, raramente recorria a providências extremas.
O perigo não estava na agitação de um paciente, mas na contaminação dos outros. A maioria dos clientes era apática por causa dos remédios, mas a situação podia fugir do controle se aparecesse um agente provocador. E aquele discurso de protesto começava a balançar as cabeças, agitar os braços e estimular falas descontroladas.
Foi nesse momento que ela disse que era a rainha Elizabeth e apertou o botão embaixo do balcão. Dois armários de uniforme branco surgiram em segundos.
-Tem um presidente agitado aqui! – disse Nanci e apontou com o queixo.
Um armário segurou por trás o infrator, passou as mãos por baixo dos braços e apertou a nuca. O segundo armário levantou as pernas e colocou sobre a maca, tirou do bolso do jaleco uma seringa e espetou o braço imobilizado. O ritmo das pernas batendo na cama de aço foi diminuindo e a boca ficou aberta no meio do último palavrão.
Apenas um incidente na rotina do PAM-Psiquiatria. Retirado o subversivo, a paz voltou ao ambiente.
***
Às oito horas da manhã, o opala deixou o chefe na esquina pra não chamar atenção. No banco traseiro ficaram paletó e gravata. Ele arregaçou as mangas, abriu três botões da camisa, desgrenhou os cabelos e acrescentou óculos escuros comprados ali mesmo no camelô.
Algo estava errado e ele ia descobrir o que era. Desde que assumiu, apesar do muito trabalho e de os assessores dizerem que estava tudo bem, uma coisa não mudava: as reclamações dos usuários e as denúncias da imprensa, que se multiplicavam com imagens desumanas sobre o péssimo atendimento nos PAMs e hospitais.
Três horas depois, o motorista continuava esperando. Almoçou num boteco, cochilou no carro, passou três vezes na frente do Posto, mas decidiu que não podia perguntar pelo chefe porque a missão era secreta.
Às duas da tarde ligou do orelhão para a Presidência e a secretária gritou com ele porque o chefe tinha faltado a duas reuniões. Telefonaram para casa, o que só serviu para assustar a madame. A diretoria foi avisada e o ambiente na sede virou um alvoroço.
O motorista provocou risos quando perguntou no balcão pelo presidente do INAMPS. Ele foi à direção da unidade e contou a história. O diretor deu o alarme e em pouco tempo o telefone avisou que tinha um cara, na maca, com sapato de cromo alemão.
Cambaleante, o presidente do INAMPS foi carregado por enfermeiro e motorista até o banco traseiro do carro.
O superintendente regional advertiu o diretor do PAM de que nada daquilo aconteceu e o diretor repassou a ameaça aos funcionários:
- Ai de quem vazar!
Vazou, é claro.
Fico pensando: o poder é sempre ridículo ou os funcionários se vingam com essas histórias?
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