DO FIM AO COMEÇO >> Carla Dias


Duas pessoas ocupam o espaço. Uma recepcionista, distraída com as mensagens do seu celular, não se dá conta de quem são aqueles que ela decide ignorar.

Os que esperam... 

Ela nunca imaginou se demorar em uma sala de espera. Ter de ocupar esse espaço lhe provoca agonias disfarçadas de nervosismo, daquele que a leva a pousar o olhar em ponto que nem sabe identificar. Está ciente de que seus lábios tremem, que pisca em uma velocidade acelerada, como se precisasse limpar as imagens, assim que elas se apresentam. Os tantos abandonos provocados por essas questões que a atormentam, como se fossem uma orquestra tocando, ininterruptamente, trilha sonora de filmes de terror. 

Apesar da sua percepção se vergar à música provocadora de arrepios e taquicardia, não é o sobrenatural que a assombra. 

Ele não se importa de estar ali, ao menos não da forma como ela se importa. No entanto, também não se sente desistente como a recepcionista que não se importa mesmo. Está ali e sabe disso. Seu corpo sente o ar-condicionado apaziguar o verão lá de fora. Seu olhar se atém aos detalhes: poeira sobre a mesa, o copo descartável com café que ninguém quis tomar, disposto sobre o monte de revistas velhas – de uso e de tempo passado –, esperando que alguém se interesse por ele o suficiente para tirá-lo dali. O papel amassado lançado ao cesto de lixo que decidiu não ser lixo e conseguiu ficar de fora. Jaz ali, sobre aquele carpete verde musgo, que já amparou mais de década de peso de corpo de transeuntes de sala de espera. 

O que eles têm em comum é o desalento. 

Nela, o desalento avisa que o mundo está prestes a acabar, de tanta falta de interesse dele em continuar. Nele, o desalento sinaliza que é hora de sair do seu universo pessoal – limitado, solitário, desimportante – e encontrar algo que tenha alguma esperança de se tornar começo. 

A recepcionista gargalha sonoramente, de vibrar susto de quebrar silêncio compartilhado por aqueles aos quais ela dedica uma desavergonhada indiferença. O telefone toca, ela coloca o celular sobre a mesa, bufa e atende à ligação. A voz angelical entrega ao outro um respeito falseado. Depois, ela volta à diversão de tela.

Por um momento, incomodados com a presença ausente da recepcionista, eles se encaram. Quase que completamente imóveis, como se alguém tivesse tirado deles a competência do movimento. Sustentam o olhar-se como se enxergassem o que nunca se deram conta de que estava ali.

Acho que o mundo vai acabar, ela confidencia. 

Tenho certeza de que ele ainda nem começou, ele corresponde à revelação.

As agonias dela se soltam da prisão particular e ganham o recinto. Pode enxergá-las, sentadas nas cadeiras desconfortáveis da sala de espera, pernas cruzadas, em uma indecência que, às vezes, a própria admira. Ele ergue a sobrancelha, feito o homem que tem a cara estampada na embalagem de ração da qual seu gato, aquele que um dia adotará, irá se alimentar. Ainda não decidiu qual será o nome dele.

Ela sabe que, se não sair dali, daquela sala de espera que não acaba, comandada por uma jovem que sabe nada a respeito de esperas que nunca chegam a um desfecho. Que desdenha do tempo, ao vestir a estampa de uma juventude que dura menos do que qualquer juventude gostaria de durar, deixando de aproveitar o desejo célere que alimenta. 

Ela empunha a bolsa, anúncio de partida.

Já vai?, ele se surpreende com a agilidade com a qual ela se levanta.

O mundo vai acabar... Não quero acabar aqui, ela deixa escapar o que deveria ser pensamento.

Mas ele nem começou..., ele diz, em um quase lamento.

E você quer que ele comece aqui?, ela questiona, rugas na testa que ele decifra como preocupação real.

Ocorrências em salas de espera sempre a incomodaram: conversas casuais, desconforto, alívio que nunca chega, civilidade... a falta dela. As revistas sendo folheadas para evitar reflexões urgentes. Para ele, esperas fazem parte da rotina. Observa as suas curvas como ruas estreitas e longamente infinitas.

Ela ali, em pé no meio da sala, empunhando a bolsa que anuncia partida. Ele ali, em pé no meio da sala, parado em frente a ela, as mãos ainda ao ar. As mãos que questionam partidas de salas de espera. 

Vai acabar?

Vai começar?

Então, ela e ele entendem: é espera e pressa.

É ausência e falta de paciência para o olhar prolongado, o entendimento de que até mesmo as urgências diferem entre um e outro... uns e outros. Que raramente elas são atendidas no tempo da sofreguidão de quem as acolhe.

Ela sorri... é sorriso?, questiona-se, em silêncio gritante que ampara a constatação de que não há sorriso reverberando naquele corpo há uma vida. Ele sorri... por quê? Não sabe ao certo como sorrisos lhe escapam, endossados pelo prazer alheio, sobre o qual ele nunca chegou a uma profunda compreensão.

A recepcionista veste o uniforme de dedicada e eficiente, aproxima-se e anuncia - os óculos vestidos para atestar profissionalismo - que em poucos minutos eles serão atendidos. 

Eles observam um ao outro, um tanto perdidos nesse desfecho de sala de espera. 

Vai acabar?, ele questiona.

Vai começar?, ela pergunta.

Salas de espera os confundem, isso é certo. No entanto, hoje eles estão mais confusos do que de costume... e mais curiosos... mais inquietos... muito mais impacientes com as limitações que criaram para si mesmos.  

A recepcionista, novamente distraída com o celular, decide colocar ordem na sala de estar, para provar que tem valor. Atenta à distração, nem percebe o copo descartável sobre as revistas, e, ao tentar colocá-las em ordem, derrama café frio sobre o carpete cansado dos passos dela sobre sua pele. 

Esbaforida, grita com o universo. 

Enlouquecida, a recepcionista tenta organizar a desorganização que a sua inaptidão de estar onde está criou. Um caos oriundo do desinteresse dominado pela necessidade. 

Ela sorri e ele sorri de volta. A sala já não é mais a das esperas.

O mundo acabou de começar.


Imagem © Rodrigo de Castro-Scott [Aproveitem para conhecer o trabalho lindeza que ele faz, clicando aqui.]

carladias.com

Comentários

Albir disse…
A espera pode ser um bom lugar pra acabar, mas não serve pra começar. "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer", cantou Vandré.
Paulo Barguil disse…
Seria o começo a sala de espera do fim?
Carla Dias disse…
Albir, Vandré foi muito feliz nessa declaração.

Paulo, sabe que agora tenho mais pra pensar? Seu comentário provocou... 😊

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