CAN'T HELP FALLING IN LOVE >> Carla Dias
Antes de dormir, já deitado em sua cama, precisando de colchão novo para confortar a coluna, ele almeja fechar os olhos e se despedir da realidade, ao menos por algumas horas.
Ao fazê-lo, o personagem que hoje conta com a minha vigília, oferece-me pausa. Diferentemente de muitos narradores que frequentam meus olhares, são merecedores dos meus esgares e alvos da minha falta de espaço para gentilezas oriundas de diplomacia desnecessária, detesto não ter o que fazer.
Debruço-me na janela, o olhar escancarando a história acontecendo no apartamento em frente. Os personagens daquele lar, de todos os cômodos iluminados, sorriem seus sorrisos largos, exposição indigna da apreciação dos tristes.
Meu personagem de hoje, do qual tenho de narrar a respiração cadenciada, enquanto ele tenta fisgar um sonho que arrepie seus pelos, é quase oco. Um homem de desapaixonadas qualidades, destinado a colocar em prática verbos que em nada inspiram grandes acontecimentos. Criatura de bondade preguiçosa, já que não oferece a ela qualquer serventia.
Impossível, durante esse silêncio quebrado pelo personagem ressonando, não tirar dos arquivos das narrações passadas um ou dois fantasmas. Há dias em que narrar a história de certos personagens se equipara a ter de engolir alguns gritos de desespero.
Meu intrometimento de narradora às voltas com um colapso nervoso esgarçou meu entendimento com as frases feitas, os adjetivos repetidos à exaustão, aquelas reticências que merecem substituição por robustos pontos-finais. Indicaram-me um ótimo terapeuta, especialista renomado na área de conter arroubos de narradores que não entendem que nasceram apenas para observar e relatar. Silenciei nas sessões exigidas pelo sindicato, mas acho que ele entendeu, que ficou ali, rodeando meu silêncio reverenciador de rebeldia, com seu olhar de quem vê na paciência a mais pura sapiência.
Seria extremamente chato ter de explicar - aos que apontam explicações sobre o que outros não conseguem explicar - que eu gosto de ser quem sou. Que meu intrometimento é o que alimenta meu existir. Não fosse ele, eu me acabaria em tantas especulações rasas, atreladas às brevidades e emergências. Morreria de tédio, durante um longo diálogo sobre banalidades.
O que nada tem a ver com a narração que apalpo na minha memória, que foi daquelas de bagunçar sentimentos com facilidade inimaginável.
"Ela sorriu e ele sorriu de volta. Ela pensou que fosse apenas uma história de amor, sem compreender que histórias de amor nunca são apenas. Enredou-se na trama da vida dele, que não deixou por menos e negou se entregar à trama da vida dela."
Enquanto o observador do ocorrido já deduziu que se tratava de uma daquelas histórias em que os astros se alinham e o óbvio se apresenta, lá estavam eles... mudando tudo. Em poucos parágrafos, em tempo tão curto, ela se desenredou da trama da vida dele, enquanto ele, depois de uma boa sacudida oferecida pela realidade dos amores não correspondidos, viu-se sucumbir àquele sentimento que evitou por uma vida, porque temia escravidão, desilusão, comprometimento.
Torturam-me os desfechos que chegam colocando fim por mero desencontro, não por falta de sentimento.
Criadores de enredos românticos costumam enfeitar as histórias fazendo os personagens se esbaldarem no ilusório. Um desses criadores, estivesse aqui, atento à cena que observo, no apartamento em frente, provavelmente a descreveria como a chegada da felicidade plena.
Não confio em autores que acreditam em felicidade plena, como se fosse possível andar com a dita, de mãos dadas, todos os dias de um ano infernal, feito um calmante natural para o desespero.
E os personagens que se tornaram alvo do meu voyeurismo, por conta de uma pausa que não me agrada experimentar, despem-se da felicidade plena, assim que os amigos deixam o apartamento. É isso, meus caros... a felicidade plena é uma fantasia da qual nos despimos, assim que aqueles que desejamos impressionar deixam o recinto.
Meu terapeuta de olhar paciente se mostrou um tanto eficiente em lidar com o silêncio. Foram várias sessões de troca de silêncios quebrados apenas pelo som da água sendo despejada no copo, na hora da sede. Foram longas, não, intermináveis pausas, pontuadas por olhares destinados a aliciar as paredes de consultório.
Uma semana depois da última sessão, quando ele, verbalizando somente um tudo bem, então, concedeu-me o documento necessário para que eu continuasse a exercer a profissão de narradora, eu o encontrei em um enredo. Fazia tempo que não sentia o estômago doer, mas com tanta dedicação à dor, que quase apaguei.
Narradores não apagam. Narradores não têm opinião. Narradores apenas relatam.
Narradores intrometidos sofrem com seus personagens.
"Ele compreende, pouco antes do refrão, que não sabe e tampouco quer encarar vazio. No entanto, tudo na casa aponta para a ausência de quem antes enfeitava seus dias. Pela primeira vez, ele compreende o coração partido, condição que tratou, guiando-se pelos manuais e regras estabelecidas para apaziguar tempestades interiores. Sabia nada sobre essa dor que não sinaliza ter fim, que veio para se sentar ao seu lado, enquanto ele assiste a um programa qualquer, sem prestar atenção ao tal. É apenas tempo sendo preenchido, antes de o desespero tomar conta dele, que passará horas andando de lá para cá, pausando para goles de destilados e reposição de cafeína, até apagar e voltar para a realidade em que não se deu conta, antes do acontecido, de que amor não correspondido raramente sobrevive."
Lamento por aqueles que insistem em permitir ao amor somente sobreviver.
Assim, o terapeuta compreendeu que nem tudo sobrevive ao silêncio. Soubesse disso antes de minguar o amor dela, tão certo que estava de que o merecia, a ponto de acreditar não ser necessário se dar ao trabalho de alimentá-lo com o amor que ele próprio sentia, teria evitado os dias enfiado em um quarto, ruminando uma tristeza tão intensa, que até demorou a compreender que era tristeza, pois tinha certeza de que era a morte revirando suas entranhas, antes de levá-lo para o limbo que fosse.
Na minha condição de narradora intrometida, chorei um tanto pela tristeza dele, e mais outro tanto, pela perda dela. Sentir é algo confuso, bagunçado mesmo. Não há ordem, não há espaço estabelecido, não há limites que funcionem apropriadamente na presença de arroubos e desesperos.
Enquanto meu personagem de trabalho do momento se espreguiça, feliz por se lembrar que sonhou com a vizinha do apartamento 54, e que o sonho foi de arrepiar pelos, como ele queria, eu amanheço a lembrança do meu ex-terapeuta ali, sentado na cama, olhar largado à falta de paisagem. E o refrão da canção a soar feito verdade que ele se negou a aceitar antes, quando ainda havia vida para ela.
“Esparrama-se na cama, um choro engolido, de quem não sabe como lidar com a saudade, o que derruba a versão na qual ele acreditava, de que controlar sentimentos é conseguir vencer na vida.”
Que vida?
Pura bobagem, devo dizer.
“Do corredor, os vizinhos pedem para que ele abaixe o volume da música, mas ele se nega. O síndico, aos berros, exige silêncio, que a madrugada já está para lá de avançada. Ele se nega. Tocam a campainha, insistentemente, enquanto ameaçam derrubar a porta, se ele não a abrir. Não abre. Não sai do quarto, do seu canto de desespero oriundo de coração partido. E a polícia derruba a porta, invade o apartamento, enquanto a música chega ao refrão, tornando-se trilha sonora da menos sofrida prisão do terapeuta.”
Take my hand
Take my whole life too
For I can’t help falling in love with you
Narradores não choram. Narradora intrometida que sou, choro.
Malditas histórias de amor!
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