Josefina >> Alfonsina Salomão
Josefina leu a frase postada por um amigo no Facebook. Ficou pensativa. Achou a afirmação enigmática. O que ele estava querendo dizer? Será que tentou ajudar alguém e se deu mal? Quis comentar alguma coisa, mas não sabia o quê... Na verdade, gostaria de saber mais sobre a história por trás da frase. Assim poderia ajudar o amigo a se distanciar, se a pessoa ajudada fosse um caso perdido. Ou, ao contrário, ajudaria a pessoa em dificuldades, convencendo o amigo a não desistir dela. Mas o amigo havia, justamente, postado que o melhor, em muitas circunstâncias, era não querer ajudar. E, de toda forma, por que queria ajudar o amigo, por quem decerto tinha afeto, mas não via há muitos anos? Ele sequer entenderia esta invasão de privacidade... Quem ajuda está numa situação de poder. Será por isso que sempre gostei de ajudar os outros? Sinto gozo no poder da relação? Ai ai... Onde esses pensamentos estão me levando? Não se pode mais simplesmente ser uma boa pessoa? Estou intelectualizando demais? Mas pior não seria não me dar conta? Ou, como escreveu o amigo, pior seria querer ajudar, em muitas circunstâncias?
A cabeça de Josefina deu um nó. Deixou pra lá. Há muito havia renunciado a toda discussão susceptível de perturbá-la nas redes sociais. Não valia a pena. De toda forma, o amigo parecia já saber o que fazer. Passou para a leitura dos outros posts na sua página inicial: o discurso do ex-presidente, o avanço da pandemia, o assassinato de uma adolescente, a extinção de novas espécies animais... Nada muito animador.
Largou o telefone e continuou seu domingo, que também não era muito animador: cozinhar, arrumar casa, lavar roupa, administrar as brigas das crianças, ignorar o mau humor do marido, catar brinquedos espalhados pelo chão enquanto fazia tudo isso... No meio da tarde, colocou os filhos na frente da televisão e se lembrou que havia comprado milho pra pipoca no dia anterior. Foi então preparar o lanche, feliz com a pequena mudança no cardápio rotineiro.
Fazia pipoca à moda antiga, pois não tinha micro-ondas. Até ganhou a velha máquina dos sogros quando se casou, mas nunca chegou a usá-la. Além de ocupar espaço na cozinha, Josefina via com maus olhos o calor esquisito gerado pelo micro-ondas ; estava certa de que sua tecnologia era nociva. Colocou o milho na panela e esperou. Depois ficou observando, com um fascínio sempre renovado, os grãos amarelos e duros se transformarem em nuvenzinhas brancas e macias. O efeito sonoro também a encantava. Começava devagarzinho, pof... pof... pof..., aos poucos ia acelerando, até atingir o clímax, pofpofpofpofpof, e por fim desacelerar. Era um processo realmente mágico. Qual era mesmo o orixá que gostava de tomar banho de pipoca? Ou era a gente que devia tomar banho de pipoca? Não se lembrava. Mas entendia a força da pipoca.
O estouro entre um grão e outro espaçou. Um cheiro de queimado ameaçou invadir a cozinha, mas Josefina desligou o fogão a tempo. Ao transvazar o conteúdo da panela para a vasilha de plástico notou, decepcionada, que muitos grãos não haviam estourado. Levou-os de volta ao fogo.
Para sua surpresa, longos instantes se passaram antes que os estouros retomassem. Eles tampouco se emendaram um ao outro como imaginara; permaneceram esparsos. Desta vez, o cheiro de queimado ganhou força. Josefina tirou a panela do fogão decepcionada. Misturou tudo na vasilha, não gostava de desperdícios. Sobretudo, não queria se dar por vencida. Ninguém perceberia aquele tiquinho de pipoca queimada. Pegou um punhado com as mãos e levou à boca, apenas para provar a si mesma que estava errada: o gosto de queimado tomou conta da pipoca toda.
Ficou olhando a preparação, decepcionada. Não deveria ter insistido em salvar os grãos de milho resistentes. Eles não queriam estourar, devia ter aceitado isso. Foi quando a frase do amigo ressurgiu na sua mente: « Infelizmente, são muitas as circunstâncias em que querer ajudar é a pior coisa que se pode fazer. » Era isso.
Serviu a pipoca aos filhos e retornou ao post do amigo, onde escreveu o que a pipoca lhe ensinara: Não adianta querer ajudar quem não quer ser ajudado. Quase acrescentou: Milho que não quer se transformar não estoura e ainda queima os outros. Daria um bom provérbio. Mas deixou pra lá, ficaria parecendo doida. Além do mais, pra bom entendedor, meia palavra basta.
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O mundo é uma grande cozinha...