HOME OFFICE - final >> Albir José Inácio da Silva

 

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(Continuação de 22/03/2021)

                                                               Setembro

 

Plínio tem certeza de que Marilda arrebenta o varal de propósito pra ele consertar.  Só pode ser possessão demoníaca. E olha que antes ele nem acreditava nessas coisas.

 

Não está gostando. Aquilo não é a sua família. Não a que pensou que tinha e de que se orgulhava. Marilda está irreconhecível, as crianças parecem pertencer a alguma facção.

 

Também não está se reconhecendo. Nunca foi um derrotado. Gira a cadeira para o espelho. Onde está aquele homem de fibra que resolve com determinação os problemas, que distribui ordens e cobra metas implacavelmente?

 

Agora nem trabalhar consegue. Está com olheiras, a pele baça, os cabelos sem brilho. Em poucos meses, um ancião. Precisa reagir. Assistindo aos noticiários, surgiu-lhe a explicação: sua família contraiu o maldito corona, assintomática, e agora aparecem as sequelas neurológicas.

 

Pela porta do escritório vê a filha na sala, quer conversar, entender. Aproxima-se por trás e ela, com os fones de ouvido, não percebe, concentrada no celular: vídeo pornô. Ele está em choque. Aquilo não estava acontecendo! Não a sua princesinha! Quer falar, mas a voz não sai. Carol percebe a presença do pai e se levanta aos berros:

 

- Tá me espionando, agora, é?  - vai para o quarto e bate a porta com estrondo.

 

Mas ele sabe de quem é a culpa.

 

- Na idade dela, eu via revistinhas pornô no banheiro da escola – reage Marilda quando confrontada.

 

- É este o exemplo que você dá. Por isso que ela está assim. Vejo as conversinhas sobre namorado que você tem com ela, parecem duas coleguinhas. Tinha que dar nisso.

 

Plínio está desnorteado.  Ele não merece isso.

 

 - Por que você só fala da Carol. Eu já peguei pornô no celular do Júnior também! – insiste Marilda.

 

- Ah, vai comparar? Júnior é homem! Não me venha com feminismos e igualdades. Menino é menino e menina é menina. Junior é macho, tem que fazer coisas de macho! – indigna-se o Plínio.


- Bem... era pornô gay – acrescentou Marilda já no corredor para escapar do surto.

 

                                                          Dezembro


Plínio não dormiu a noite toda. Suas mãos tremem. Passa o tempo sentado no computador, mas sem produzir, sem concentração. Vira-se para o espelho, está destruído, manchas no rosto, olhos vermelhos, respira com dificuldade, a cabeça dói. Parece que vai explodir.

 

Sai cambaleando do escritório e entra no banheiro, abre gavetas e portas, revira as prateleiras. Não está aqui. Vai para o outro banheiro. Acha no fundo de uma gaveta o que procurava.  Enche a mão de comprimidos e engole com água da torneira.

 

Quando os outros acordam, ele está no chão.

 

Alguns procedimentos invasivos depois, Plínio acorda no hospital com cara de defunto e aos poucos reconhece a família.

 

- Por que me trouxeram pra cá? Eu queria morrer – olha pro filho e lembra do pornô gay! - aliás, ainda quero!

 

O médico entra com o resultado dos exames numa prancheta e comemora:

 

- O senhor é um homem de sorte, Seu Plínio! Se fosse calmante, naquela quantidade, estaria morto. O senhor teve uma overdose de anticoncepcionais.

 

A princesinha, que tinha debulhado a cartela num frasco vazio pra disfarçar, olhou as árvores pela janela.

 

- Carol! – grita a mãe.

 

- Eu quero morrer – geme de novo o Plínio.

 

 A menina levanta os ombros:

 

- Não reclama, mãe. Eu salvei a vida dele.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Fa-bu-lo-so! Sempre achei que uma junção de crianças era uma minigangue, mas facção ficou hilário!!! Muito boa cronica. Gostei muito da desconstrução que vc faz do personagem, que sempre vivia atras de uma capa de perfeição digna de um túmulo caiado. A tentativa de suicídio por anticoncepcional nesta familia disfuncional é a melhor de todas as sacadas. Albir, vc fez surgir o pior sarcasmo em com esse texto. Adorei!
whisner disse…
Não paro de rir aqui. E o final é muito bom, ironia absoluta. Abraços.
Carla Dias disse…
Albir, as continuações cutucam vorazmente a minha ansiedade escorpiana, então, geralmente espero o capítulo final para ler a história de uma tacada só. Neste caso, só posso dizer uma coisa: fantástico! Que texto com humor no ponto da ironia que faz parte da nossa vida, que vem para revelar que não há como brecar a vida, e seus sujeitos, suas ternuras e provocações. Obrigada por essa beleza de história!
Albir disse…
Obrigado, Nádia, Whisner e Carla pela generosidade de seus comentários.
Paulo Barguil disse…
Excelente, Albir!
Não acredito que foi o final, pois a pandemia continua...
HAHAHAHAHAHA

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