VOZES ME CHEGAM >> Sergio Geia

 


Vozes me chegam é o título desta crônica. Concordo com você, o melhor seria algo do tipo Ouço vozes, ou Vozes me falam, ou simplesmente uma solitária Voz. Mas vale o que está escrito e está escrito Vozes me chegam. 
 
Após uma corrida desenfreada para quitar uma fatura, após a compra dos pastéis e das bananas, no silêncio do meu quarto, a entender um pouco sobre as coisas, vozes me chegam. E são vozes de festa, de almoço em família para comemorar alguma coisa.  
 
Eu estava meio triste, resolvi ler alguma coisa, peguei um Rubem Braga. Sentei na sacada e fui direto ao índice — eu sempre anoto algum sinal ao lado do título para identificar as crônicas de que mais gostei —, corri as páginas em busca de Receita de Casa, na 111. Eis que na 123, eu encontro um pequeno texto escrito à mão, dizendo Vozes me chegam. Após uma corrida desenfreada para quitar uma fatura... 
 
Primeiro desconfiei. Seria eu mesmo que o teria escrito? Sim, a letra era minha, estou dizendo em relação à autoria do texto. Era um traço bem-definido, com segurança e capricho, escrito após a crônica Sobre o Vento Noroeste. Eu estava disposto a ler Receita de Casa, mas, encafifado, passei em revista esse Sobre o Vento Noroeste em que Braga trata dele mesmo, o Noroeste, que faz ranger as folhas secas, deixa a boca seca e na garganta uma fina, indefinível areia (Ah, velho Braga!). Procurei algo que me remetesse às tais vozes que me chegam, mas nada encontrei. 
 
Tentei então analisar o escrito, quem sabe decifrá-lo. 
 
Após uma corrida desenfreada para quitar uma fatura, após a compra dos pastéis e das bananas. Bom, isso aconteceu num sábado, pois é neste dia que vez em quando vou ao mercado, que compro pastéis e bananas. Pois neste dia eu fui ao banco também pagar uma fatura, passei no mercado, comprei bananas para a semana e pastéis pro almoço. 
 
No silêncio do meu quarto, a entender um pouco das coisas. Ah, eu era um brincalhão! Como poderia imaginar que no silêncio do meu quarto eu iria entender um pouco das coisas se até hoje eu não entendo patavina de coisa alguma? Aliás, mudando de assunto (ou não), certa vez assisti a uma live da Cristiana Moura que adorei. O tema era envelhecer e papo vai, papo vem, com sua parceira de live Tássia Pinheiro, surgiu uma coisa maravilhosa, excepcional, dessas que ao escutar a gente tem de aprender, não sei se dito pela Cristiana ou pela Tássia. Era algo mais ou menos assim: as pessoas dizem, nossa, como você está conservada! Eu não quero estar conservada, eu quero estar usada, usada!, muito usada pela vida, olha que delícia? Então se é que eu entendi algumas coisas desta vida, uma delas é que nela não precisamos estar conservados como picles (isso foi a Cristiana). Ao contrário, que sejamos usados, bem usados, muuuuuuito usados e, se há sinais, como rugas no canto dos olhos, ah, como valeram a pena! 
 
Vozes me chegam, e são vozes de festa, de almoço em família para comemorar alguma coisa. Provavelmente um aniversário do vizinho, acontece sempre. Aqui a casa é da avó. Ela cedeu seu quintal, onde havia plantas e varais, para um campinho de futebol, com grama e traves. Um churrasco de aniversário do neto, a criançada batendo bola, pais e amigos assando a carne, bebendo e se alegrando. Se bem que algo me diz que essas vozes vêm de lá de dentro, remexendo coisas que ficaram para trás. 
 
 Não sei qual a razão desse texto na página 123 do velho Braga e por que o escrevi. Como me conheço (sou um brincalhão mesmo), talvez tenha vislumbrado na luz das ideias um fiapo, uma pequena e remota possibilidade de crônica. Faz tempo isso, anos, mas acho que eu estava certo.

Comentários

Carla Dias disse…
Sergio, que delícia de crônica! Mostra como um isso puxa um aquilo e descambam naquilo outro.
Também achei a leitura desse texto deliciosa!
sergio geia disse…
Carla e Alfonsina, delicias de comentários.
Albir disse…
Gosto desses parênteses que você abre pra falar com o leitor, como se o conduzisse pela mão. Ótima crônica!
Paulo Barguil disse…
Vozes que chegam...
Vozes que chagam...
Vozes que saem...
Vozes que saram...
Gostei muito das conexões, das vozes atemporais.
sergio geia disse…
Obrigado, queridos Paulo e Albir pelas ilustres presenças

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