PEQUENAS INSANIDADES COTIDIANAS >> Carla Dias >>


Ela observa o pote com balas de leite sobre a geladeira, como se dialogasse com um inimigo disposto a se comunicar somente por intenções subjacentes, ou seja, que gosta de dar trabalho, mesmo quando o conflito existe porque alguém ficou com preguiça de conversar. Sabe que esse é um inimigo que conhece o poder do dulçor, e, em tempos cascudos feito este, quem não gostaria de algo para abrandar o amargor oferecido a torto e a direito?

Ela não gostaria.

Na verdade, está disposta a vencer tal inimigo e ainda aquele outro: o desejo – impaciente, indiscreto, desavergonhado – de confidenciar nuances existenciais a desconhecidos, porque os amigos já não aguentam mais escutar suas histórias de sempre. E em tempos feito este, quando parece que a vida segue em looping, quem não gostaria de uma plateia renovada?

Ela não gostaria.

Acha preferível, e até mais justo com ela e seus amigos, melhorar o repertório do assunto, criando novos causos para contar a eles, enquanto batem as informações fresquinhas com os ocorridos anteriormente.

Passa por ele, sempre desviando, como se evitasse tropeçar em obstáculo. Durante o dia, ela o observa, como se ele fosse um convite vitalício para desopilar o fígado, enquanto se convence de que ele, o próprio fígado, tem mais a perder do que ganhar, dependendo do drama ou da necessidade de relaxar do dia. É dos poucos que, com mais frequência do que ela gostaria, ganha espaço nas suas noites de vadiagem existencial. 

Sim, o vinho.

Não sabe meditar, exaurir-se serve a ela de combustível para desejar um disso e outro daquilo. É péssima em almejar mais para si, a fim de conquistar certo conforto. Neste ponto, maldiz a si mesma, porque acredita que certo conforto seja bem-vindo, especialmente se ele servir para evitar um aumento significativo no que já é significativamente irritante: ligações de operadoras de telefonia.

Cercada por pequenas armadilhas, ela circula por esse universo, valendo-se de seus subterfúgios preferidos. Entre plantas, planos e suspiros, alguns palavrões que aprendeu a verbalizar com propriedade e maritacas que, vez ou outra, visitam sua janela, ela aprende a paciência, por pura consciência de que, se não o fizer, os cabelos brancos sairão ganhando.

Há essa especial insanidade, da qual ela se desvia, quando a dita decide se apropriar de sua mente, aparvalhando seu coração. Mas essa é segredo, até para ela.


Imagem: III Omen © Frances MacDonald McNair

carladias.com


Comentários

branco disse…
Belo...como sempre!!
Carla Dias disse…
Obrigada, Branco. <3 Beijos!
Zoraya Cesar disse…
As pequenas insanidades do dia que nos salvam da insanidade total belamente representadas pelas palavras sempre tocantes de Carla Dias!!!
Albir disse…
A gente se reconhece nesse itinerário, Carla.
Carla Dias disse…
Zoraya, vamos combinar que há insanidades que valem a pena, não? Beijos!

Albir, sempre bom compartilhar itinerários. Beijos!

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