NÃO QUERIA NARRAR TAL DESFECHO >> Carla Dias


O que ficou para trás, que nem mesmo em lista de desapego entrará. Aquilo tudo que fez com que ele voltasse ao início, tantas vezes, quando estava claro que o caminho era aquele, só que ele não quis reconhecê-lo. Não importa o motivo, se era próprio ou forjado pela realidade. Ele não quis continuar.

Ou talvez não soubesse como. Há muitos que não sabem como. Há tantos que não têm ideia de que não sabem como, e seguem como se soubessem de tudo.

Sim, eu mesma. A narradora intrometida, que, pela primeira vez, se tivesse escolha, não narraria, tampouco se intrometeria em uma história.

Nessa história.

Fim de tarde. Ele sabe viver sem sol. Ele não faz tanta questão de que o tal se mostre sempre presente. Prefere o sol como visitante oportuno: secar as roupas, avivar as plantas, colorir o dia. No entanto, eventualmente gosta de sol em fim de tarde, quando ele apresenta a noite, e seu episódio de pôr-se dura mais do que um episódio de série de televisão.

A questão é que ele anda cansado do quanto dura não saber. Não há quem seja capaz de desvelar os segredos dessa duração, porque ela está atrelada à todas as questões existenciais que o ser humano já formulou e que permanecem enredadas em mistério.

Sonhava - dias sim, talvez um não, por pura insistência da pausa - com uma varanda dessas, que não acabasse na sala de estar de um morador do prédio do outro lado da rua. Trabalhou para isso. Sabe que houve vezes em que vendeu a alma ao diabo, ao deus, às parcelas na planta, aos prazos impossíveis de cumprir, às filas de espera, à abstinência de companhia. 

Hoje, nem sabe se é capaz de ser companhia de quem seja. Na sua varanda, pós pôr do sol, ele respira devagar, quase nada. É um som mirrado, que ecoa, desconcertantemente, quando precisa ser recuperado com um arquear a cabeça e se dar com as estrelas, revirar olhos. Parece involuntário, e talvez o seja, porque o personagem de hoje não vê futuro, nem mesmo da sua varanda. O que ele vê, melhor, o que o consome é a falta.

Eu não queria narrar a história dele. Houvesse um departamento pessoal para exigir demissão, lá eu estaria. Mas aqui estou, desprovida desse direito: sentada, de frente para ele, as costas para o sol já minguando a luz que nos ilumina, sentindo minha pele sofrer da beleza dele, que esquentou infernalmente a balaustrada que evita minha queda.

Eu cairia, se isso me permitisse não narrar essa história.

É verão insano, de fazer até pensamento derreter, mas ele... miúdo, envolvido na sua coberta preferida, porque ela é leve e ainda assim o aquece na medida do necessário. 

Desejou muito essa varanda. Dedicou-se a obtê-la. O resto do apartamento não importa muito. Tem onde dormir, comer, banhar-se. Ali, não... Ali ele olha para o horizonte e imagina o que gostaria de ter vivido e teve chance de viver, de fato, e nem se deu conta disso.

Se eu pudesse contar a ele sobre a facilidade que há em transformar o possível em um cárcere do impossível. Sobre a delicadeza com a qual o desalento se muda para dentro da pessoa, esparramando-se, preguiçosamente, preparando o tapete vermelho para a incapacidade de identificar contentamento que seja. 

Não posso, meu caro. Sou pouco, quase nada, diante da importância da sua existência.

A luz do sol escorrendo pelo rosto dele, aquele flácido terreno que suporta olhos anuviados, lábios ressequidos, ausência de sobrancelhas. Pudesse tocá-lo, massagearia seus pés, que eles já não aguentam o corpo, quebram-se tão fácil. São inúteis, mas sabem doer e o fazem muito bem.

Olha para o sol, à espera de que ele parta, deixando de lembrança uma noite de céu limpo. Ele gosta de céu, de lua, de horizonte. Foi para isso que ele se dedicou a vida toda, para essa varanda. Um pensamento dele quase me foge, porque estou distraída com essa vontade de partir dessa história. 

“O que me falta é tanto, mas tanto, que nem sei dizer o que é.”

Essa narradora intrometida aqui é chorona mesmo. Meu choro não é contido, mas esbravejante, pede por satisfação. 

Não queria lhes contar, mas esse personagem merece meu indiscreto intrometimento: ninguém o conhece de verdade. Ninguém sabe a pessoa interessante que ele é, daquelas que têm tanto a oferecer, que resta aos outros mortais aprender com elas. Ninguém aprendeu com ele, porque ele não entendeu o básico: não soube reconhecer que já tinha o que ele mesmo desejava, assim como o que a vida oferecia.

Meu grito de dor é doer nos ouvidos de todos os narradores, esses impotentes que aprenderam a se calar e seguir, desamarrotando seus ternos e vestidos, preparando-se para a próxima narração. Eu não consigo. 

Pudesse dizer - e que me escutassem -, eu diria ao ser humano que ele precisa prestar atenção ao que acontece a sua volta. Que mesmo cada um deles sendo único, não há varanda com horizonte acabando na sala de estar de um morador do prédio do outro lado da rua. Às vezes, a vida que você precisa se encontra na cena da vida do outro, não porque vocês são os mesmos, mas porque vocês são um pouco de tudo e de todos. Porque vocês são partes, e para a minha inveja, partes que podem mudar o roteiro das próprias histórias e fortalecer conexões. Por favor, façam isso com mais competência, para que eu não tenha de narrar histórias feito esta, de quem tem tanto a oferecer, mas não é conhecido, reconhecido, tampouco sabe reconhecer. Um recipiente repleto do que importa, sendo entornado em lugar nenhum, para o benefício e prazer de ninguém.

Ele suspira e se põe com o sol.

Fim.

Imagem © Marion por Pixabay

carladias.com


Comentários

branco disse…
ahhh carlinha....ahhhh carlinha
Zoraya Cesar disse…
"Se eu pudesse contar a ele sobre a facilidade que há em transformar o possível em um cárcere do impossível. "

Carla, vc seduz e leva seu leitor pela mão. Pois o que vc declarou abertamente nao poder fazer, vc o fez com maestria e sutileza. Não é a Princesa das Palavras por nada!
Carla Dias disse…
Branco, Branco... obrigada por aparecer. Beijo!

Zoraya, um agradecimento daquele carregado de afeto. Beijo!

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