RUA DOS IPÊS >>> Nádia Coldebella

Durante os verões da minha infância, eu acordava cedo e abria a janela da sala da minha velha casa de madeira. Dela eu podia ver, no horizonte, os primeiros raios de sol pincelando o vasto céu em tons laranja e vermelho. Meus ouvidos eram invadidos pelo chilrear suave dos pássaros - sabiás, pardais, tesourinhas, bentevis, joão-de-barros e tantos outros - que faziam morada nos frondosos galhos dos ipês que contornavam minha rua. Embaixo das árvores, um tapete de flores brancas, amarelas e rosas se estendia para receber a manhã calorenta. Uma brisa insinuante entrava em minha casa e, sem nenhum pudor, acariciava meu pescoço e levava à minhas narinas o perfume das flores que adornavam minha rua. 

Atrás dos ipês, estendiam-se calçadas de tijolinhos também manchadas pelas flores. E, pouco além, com suas enormes varandas, as casas de madeira. Eram pintadas com uma paleta de cores vibrantes sem fim: rosa, amarelo, branco, verde, vermelho, azul. A minha era verde e branco e a cerca, baixa e também de madeira, era vermelha. Mamãe plantava rosas de todas as cores, mas nas outras casas havia margaridas, gerânios, gérberas, hortências. Era uma época em que as casas eram construídas de maneira afetiva, para que tivéssemos contato com os outros, para que não ficássemos ensimesmados em nós. 

E assim era. 

Meus pais, italianos de nascimento e brasileiros de coração, acordavam mais cedo do que eu e é por causa deles que minha velha casa pululava de vida. Mamãe punha a água para aquecer e papai preparava a cuia de chimarrão. Eles sentavam-se nas cadeiras de balanço da varanda e embalavam-se, fazendo ranger o assoalho de madeira. O barulho me acordava e eu ficava um pouco na cama, mas logo ia  para perto deles. A gente ficava lá, sem falar, olhando os raios de sol que se esgueiravam pelos galhos dos ipês, transformando as flores brancas caídas em pequeninos pedaços de ouro. Às vezes, um brilho prata aparecia quando gotas manhosas de orvalho eram tocadas suavemente pelo singelos raios de sol. Pouco a pouco, a vizinhança aparecia em suas varandas e emitia um bonjorno ou um bom dia curto, mas afetuoso. Naquela hora, a maioria das crianças ainda dormia e falar baixo, quase num sussurro, garantia um pouco mais de sossego. 

Elas, porém, logo despertavam e engoliam correndo a primeira refeição do dia. Amotinados contra a lei do silêncio matinal, invadiam a rua com suas bolas, bicicletas, bonecas, bolinhas de gude e toda a espécie de brinquedo. Neste playground improvisado, juntavam-se aos pássaros numa algazarra sem fim. Era o alarme para que os adultos voltassem sua atenção para os afazeres diários e permitissem, por algumas horas, o domínio daquele reino às crianças. 

Havia quem por lá passasse e torcesse o nariz. Provavelmente uma pobre alma inconsciente de que aquele pequeno oásis de alegria era um pedaço do céu.

Após alguns verões, eu parei de abrir a janela e não me interessava mais pela brisa matutina que carregava consigo o cheiro das flores. Eu cresci. Da Rua dos Ipês trouxe comigo amigos multicoloridos que eu defenderia com minha própria vida: o João e o Marcelo, que, de tão amigos, mais tarde se tornaram um casal; a Maria, negra maravilhosa e paixão da minha juventude, que só não se casou comigo porque apaixonou-se pelo Alemão, meu grande amigo - o nome dele era, na verdade Antônio, mas era tão branco que o apelido logo pegou. O Joca chegou mais tarde, do nordeste e, no fim da minha adolescência, foi companhia das noites em que, lamentando a paixão de Maria e Alemão, eu me entregava a bebedeira. 

Eu fui para longe, estudei, trabalhei, me tornei um homem, um doutor, e voltei muitas vezes para a velha casa de madeira, para meus velhos pais e meus velhos amigos. Mas quase 40 anos se passaram até que eu olhasse a rua novamente. Há muito os ipês haviam ido embora, deixando para traz apenas o nome. O lixo havia tomado o lugar das flores e a maioria das casas de madeira havia sido substituída por prédios amarronzados ou por casas modernas de alvenaria. As que sobraram - a minha era uma delas - estavam descascadas, cinzas, com cercas altas e de metal. Buzinas de carros e gritos mal-educados de gente tentavam preencher o vácuo deixado pela infinita balbúrdia das crianças que éramos outrora. 

A minha rua cheia de ipês havia sido corroída pelas dores do tempo.

Naquele fim de abril, porém, não havia barulho. Já havia algum tempo que nós também falávamos mais baixo, deixando o silêncio de fora invadir nosso mundo interno. Nesse mesmo silêncio, eu abri uma fresta da janela e senti um odor ocre, pútrido, vindo da rua. Algumas pessoas transitavam por ali, cabeças baixas, máscaras no rosto, mantinham distância umas das outras. Os olhos refletiam o pavor dos últimos meses, principalmente quando encontravam alguma fila ou um amontoamento de desavisados que pareciam desconhecer o risco que corriam.

Eu, porém, o conhecia, pois quando voltei a casa de meus pais, o pesadelo já havia tomado forma. Meu pai ainda estava ali. Mamãe não. O João deixara o Marcelo; a Maria partira sem o Alemão e os filhos. O Joca não veria mais a mãe velhinha e senil. Também não veria mais a esposa. Ela lutara bravamente, mas não conseguira sair da UTI.  

Lá fora o sol ardia duramente sobre o asfalto. Nada havia mudado.
Mas os ipês não existiam mais. Tudo mudou. E eu chorei.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Ele chorou. Eu também.
Albir disse…
Harmonia que envolve a tristeza com a beleza. Parabéns, Nádia!
Cristiana Moura disse…
triste, belo, saudoso. chorei.

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