A PESTE - final >> Albir José Inácio da Silva
(Continuação de 23/03/2020)
O fim da escravidão não serviu de nada pra minha
mãe, que continuou na cozinha e no porão. Eu era muito pequena, mas dizem que
ela morreu de maus tratos pela Sinhá Martina.
No dia da abolição o comendador reuniu a “negralhada”,
como ele costumava dizer, e fez a proposta. Eles continuavam lavrando a terra,
cuidando do gado e dos serviços da fazenda, só que não seriam mais escravos.
Ficavam com um pedaço de terra em que podiam plantar e construir suas casas,
depois que acabassem o trabalho da fazenda, claro.
Quando a produção fosse vendida, eles teriam algum
dinheiro, mas, desde já, podiam adquirir no armazém da fazenda as coisas de que
fossem precisando. Que pensassem bem, não tinham pra aonde ir. O lugar mais
perto ficava a três dias de caminhada. E eles, com mulheres barrigudas e
crianças, iam morrer pelos matos.
A segunda praga, segundo o rosário de imprecações de
Sinhá Martina, foi a seca. Também um castigo pela promiscuidade do Sinhô e dos
negros. Ela não acreditava que fosse tudo culpa do Comendador, as negras o
provocavam com suas ancas grandes e aquele rebolado escandaloso.
A seca começou quando eu tinha uns dez anos e durou
até o fim da fazenda. Os rios ficaram enxutos, as minas e os poços secaram. A fornalha
matou a lavoura, muitos escravos e a maior parte dos animais. Sobreviveram umas
poucas aves com gogo, umas vacas magrinhas e uns porquinhos finos que pareciam
cães, que foram levados pra casa grande. Os cavalos e jumentos que ficaram
vivos tremiam as pernas e não aguentavam o próprio peso. Uma cerca foi erguida
em torno da casa grande para impedir que alguém se aproximasse e que os animais
saíssem.
Nos barracos os negros sobreviviam comendo calango
e alguma raiz que conseguiam arrancar de entre as pedras quentes na terra seca.
Até os miúdos, as vísceras, que antes eram deixados aos pretos, agora não saíam
mais. A casa grande aprendeu a gostar de feijoada, que virou prato de domingo,
principalmente naqueles tempos de vacas magras.
Os negros da fazenda comiam melhor, apesar do
controle rígido de Sinhá Martina sobre a despensa, sempre lhes sobravam ossos e
aparas de carne.
Quem também comia melhor era Padre Antônio. Antes
ele vinha a cada três meses para ouvir as confissões de Sinhá, mas com a seca
as coisas foram ficando ruins em todos os lugares. Na fazenda havia pelo menos
comida. E o comendador gostava do padre acalmando as crises da Sinhá por causa
das suas negrinhas, embora ultimamente já não tivesse forças pra elas.
A última e definitiva praga, segundo as contas de
Sinhá Martina, foi a peste. Começava com enjoo, vômito e tremedeira. No final,
febre e uma moleza que não deixava ficar em pé. Em dois meses matou onze
pessoas na casa grande. Sete da família, três negras da cozinha e um moleque
que fazia serviço de quintal e, diziam, era também filho do comendador.
Para maior desespero de Sinhá, o padre agora tinha
que batizar os rebentinhos tingidos na capela da fazenda por ordem do bispo.
Ela achava que os negros é que carregavam a peste, com sua promiscuidade e sua
macumba.
Quando voltei à sala, pela hora do almoço, Sinhá
tinha já um fio de voz, mas o tom ainda era cortante.
- O salário do pecado é a morte, Padre – citou Sinhá
com os braços caídos e os olhos parados na janela.
- É a carne, Sinhá! É a carne!
- Sim, padre! A carne sempre foi a perdição do
homem desde Adão e Eva. Mas olha aqueles
bugres correndo lá fora e ninguém peca mais que eles. Ninguém sabe nem quem são
os pais dos filhos, tudo misturado numa festa do demônio que a gente escuta daqui
os tambores a noite toda. E a peste não pega neles, protegidos por seus guias, seus
orixás e pelo diabo. Nosso pecado foi dar liberdade pra eles, foram as
abominações do Comendador com essas negras, e é agora essa coisa de o senhor
batizar e casar na capela esses adoradores de demônios. Isso não ia ficar sem
castigo, padre, Deus é também fogo consumidor! – e sinhá engasgou-se num acesso
de tosse.
- Não, sinhá! É a carne que nós comemos. A peste
está na carne! – conseguiu dizer o padre.
No fim da tarde, continuavam os dois no mesmo
lugar. O Padre com os olhos fechados e a cabeça caída de lado e Sinhá Martina
com os olhos abertos na direção da janela. Fechei os olhos da Sinhá, como
último serviço, pra não dever nada a ninguém.
Voltei ao porão e juntei uma trouxinha com as
minhas coisas. Fechei os olhos de Kinah, que ela também era gente, e saí da
casa na direção aos barracos.
Mesmo quando a pestilência que ventava da fazenda ficou
insuportável, ninguém quis entrar na casa com medo de ser acusado de alguma
coisa. Dois pretos saíram em viagem pra avisar a intendência. Sabe como é, tudo
sobra pra gente da nossa cor.
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