A LÂMPADA NUM DIA DE CHUVA >> Zoraya Cesar
A chuva caía pesada e fina, cortante como navalhas, machucando o rosto do rapaz. Ele andava distraído, cabeça baixa, as mãos enfiadas nos bolsos, o casaco mais cinza e gasto que o tempo; seu ânimo, tão desconsolado como o do cachorro magro e abandonado, que olhava assustado as pernas que passavam, espremido debaixo da marquise estreita.
Um carro não o atropelou por muito pouco e jogou lama em suas calças.
Ele continuou andando, indiferente, tanto se lhe dava ter um carro passando por cima de seu corpo, a lama na roupa. Atravessou a rua, esbarrando nas pessoas, e, de repente, parou, um pouco aturdido, onde estava mesmo? Olhou em volta, sem ver coisa alguma realmente, o cérebro já embotado de apatia e chuva.
Ele nem reparou na lama que espirrou em suas calças, nem no carro que quase o atropelou. |
Uma claridade quente e suave chamou sua atenção. Estava em frente a uma loja. Não se lembrava de já tê-la visto alguma vez. A porta, estreita, era de madeira pintada de azul. Uma grande janela encimava um canteiro de urzes viçosas, que dividiam harmoniosamente o espaço com gerânios
vermelhos. A visão do interior estava um pouco distorcida pelas gotas de chuva que escorriam ao longo dos vidros, mas ele pôde ver, nitidamente, em cima de uma mesa abarrotada de objetos, de todos, o mais curioso: uma ‘lâmpada de Aladim’.
Levado pelo impulso de olhar a lâmpada de perto, ele resolveu entrar. Até porque estava com frio, molhado e faminto. E não tinha mesmo para onde ir.
A porta fechou-se atrás dele, isolando-o da gelada chuva cortante, do barulho e da fumaça dos carros, da azáfama insana. Do medo. Da solidão. Do desespero.
Ele não soube explicar por que, mas teve a estranha impressão de que a loja e os objetos estavam... esperando por ele. Deve ser o cansaço, pensou, a angústia de quem precisa de um pouso.
A lâmpada era bonita, e parecia realmente muito antiga. Ele teve um irrefreável impulso de tocá-la e fazer um pedido. |
Ali estava ela, de metal polido, cheia de arabescos finos e delicados, sobre uma pequena mesa de mármore negro e pés de ferro, na qual estavam dispostos, também, uma xícara e um prato de porcelana chinesa, talheres de prata. Sobre o prato, uma fatia de bolo que, à sua fome, pareceu-lhe deveras apetitoso. Uma fumaça cor de âmbar, cheirando a incenso e rosas, saía do fino bico da lâmpada, espalhando-se pelo lugar. Ele passou, levemente, os dedos sobre ela, pedindo um milagre, pequeno que fosse, que mudasse o rumo de sua vida, que o tirasse da beira do abismo.
Ele via, maravilhado, o chá mudar de cor enquanto o bebia. Um chá que sabia a tardes de outono. |
Tomado o chá, reparou em volta.
Parecia um antiquário, mas também poderia ser uma casa aconchegante, mobiliada com objetos antigos. Relógios, livros, móveis de diversos tamanhos, baús, louças, utensílios, abajures, espelhos. Todos bem cuidados, bonitos, o ambiente limpo, como se o morador esperasse visitas. Apesar do aparente caos, o rapaz sentiu que saberia encontrar cada objeto. Bobagem, pensou. Está na hora de partir, ou podem pensar que vou roubar ou comprar alguma coisa. Prefiro morrer a roubar. E não tenho dinheiro nem para o pão. Começou a chorar, o coração doendo. A fumaça e o cheiro que saíam da lâmpada ficaram mais suaves, e, novamente, ele serenou.
Levantou os olhos e viu um pequeno console de ferro trabalhado, onde havia um livro de couro marrom-castanho e uma folha de papel amarelada e encarquilhada, como uma velhinha chinesa que tivesse sido esquecida ao sol por muitos anos. Ele se aproximou, e leu, escrita com caligrafia grossa e legível:
Se você ainda está
aqui, é hora de saber que essa loja está viva.
Todos os
seres que aqui estão foram entregues em confiança para serem guardados e somente vendidos a quem lhes der o devido valor. Seus preços e características –
incluindo como devem ser tratados e em que tipo de lar desejam voltar a habitar
– estão nesse livro ao lado.
Quando chegar a sua
hora de ir embora, você saberá o que fazer. Não se preocupe com coisa alguma. Enquanto
você tratá-la com respeito e amor, essa é a sua casa, e ela lhe dará tudo o que
precisar.
Se a quiser como seu
lar, faça o que tem de fazer. Do contrário, basta sair que a porta se fechará
sozinha e você nunca mais encontrará a loja. Será como se ela nunca tivesse
existido e tudo não passará de um sonho num dia de chuva.
Um último aviso: tolo
é aquele que rejeita o milagre que lhe é concedido.
Ele guardou a carta na gaveta da mesinha de cabeceira que aparecera debaixo do console e olhou para fora. A chuva havia parado, e dava para ver os transeuntes chapinhando na lama que se formara em poças sujas espalhadas pela rua. O cachorro sumira.
Ele encontrara o que mais precisava. Começou a ler o livro que o ensinaria a viver em seu novo lar. |
Sentou-se, tomou mais uma xícara de chá e comeu um pedaço do bolo. Não havia pressa, ele sabia.
Estava em casa e os clientes não tardariam a chegar. Começou a ler o livro.
Estava em casa e os clientes não tardariam a chegar. Começou a ler o livro.
imagens: Pinterest
Essa crônica (ublicada em 5 de maio de 2017) faz parte do programa Crônica de um ontem.
Comentários
Uma coisa que me preocupa nos seus personagens é a voracidade. aparentemente, todos gostam de bolo, a ponto de comer uma fatia que lhes seja apresentada sem maiores explicações.
Essa pode ser uma das causas da alta taxa de mortalidade de seus personagens.
E esse de hoje ainda tomou um chá, cuja origem também lhe era completamente desconhecida.
Voltando ao texto, é admirável o modo como você o encerrou, deixando em aberto todo um universo de possibilidades, dando ao leitor a certeza de que a ideia criadora não se esgotou ali.
Nada de gênio da lâmpada, de três desejos, de soluções infantis ou Deus ex machina. Só sugestões sutis. Muito maduro.
Parabéns.
Fantástica!!
Fantástica!!
Márcia Bessa