METÁFORA DO HOMEM PRESO >>> Nádia Coldebella

Parece que o homem sempre esteve ali, sentado no chão, mãos e rosto colados nas grades. Ele observa, anestesiado, o mundo que se desenrola a sua frente. Vive seus dias imóvel, absorto num eterno continuum. Seu tempo é um instante fugaz, pretensa eternidade que logo se desvanece.

As vezes, um movimento, um som ou uma brisa o recordam de sua mortalidade, trazendo aos seus olhos ocos a luz da consciência. Nesses momentos, o homem movimenta a cabeça para a direita e para a esquerda e sua expressão se torna atônita ao prescrutar as extensas grades.

Realmente, ele tem razão nesta angústia. As grades são tão altas e compridas que não é possível saber seu começo ou fim. Em frente a elas se desdobra uma grande cidade cinzenta. Destaca-se uma avenida movimentada, com grande tráfego de carros fumacentos e barulhentos. A fumaça embaça a vista, o barulho entorpece os sentidos. Do outro lado da rua, os prédios enormes parecem curvar-se por cima das grades e são tão sem graça como o resto do cenário. Os transeuntes usam roupas da mesma cor do asfalto, andam de forma semelhante, cortam os cabelos de forma idêntica. Também são um pouco cinzas e combinam perfeitamente com a paisagem. São eles que páram e apontam em direção ao homem.

Enquanto está consciente, ele se agita, os olhares que os pedestres lhe lançam causam grande desconforto. Ele acha que cometeu um crime muito grave para estar preso assim, mas não se recorda do motivo de sua prisão.  Perdido em seus pensamentos e reminiscências, logo é embalado pelo mantra entoado pela mesmice da cidade e é impulsionado a entrar em si mesmo, neste transe interminável. Volta a inação e permanece nela por um tempo que lhe é desconhecido. E assim os dias se passam, até que novo som, movimento ou brisa o traga de volta.

Hoje, porém, uma criança parou junto a grade. Olhou profundamente para a vaguidão dos seus olhos e apontou o dedinho:

"Por que você está agarrado na grade?".

Era um sussurro de uma criança cinza que foi afastada da grade pela mão de uma mãe também cinza. Mas em seus ouvidos, a voz da criança era um grito.

Novo mantra.

O movimento incomum o desperta. Uma vaga lembrança, que mais parece um desejo, surge em seu pensamento confuso. O homem se recorda de querer pertencer, de querer fazer parte, mas não sabe exatamente do que.

"Por que você está agarrado na grade?"

Como num nirvana, toma conhecimento da inegável verdade: o dedo da criança não estava apontado para ele, mas para algo além dele.

"Por que você está agarrado na grade?"

Obedecendo ao instinto, o homem vira-se, olha e vê. Atrás dele encontra-se um mundo colorido, verdejante, dinâmico, repleto de energia e impulso vital. Suas pupilas se dilatam, sua boca entreaberta emite um som de surpresa: vida em muitas cores, espécies  e tamanhos, em algazarra e alvoroço.

Pela primeira vez, desde que se recorda, sente uma genuína sensação de eternidade e uma breve angústia. Quantos anos perdeu  junto a grade almejando ardentemente um mundo cinza?

Ele se levanta. Corre. E se junta a  vida, sem olhar para trás.



Quais são as grades que te prendem?
Que assim como esse homem,  possamos olhar para dentro e nos libertar destas grades - passado, pessoas, traumas - e que, conscientes de quem somos, almejemos fazer um 2020 mais colorido e vivo!

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Que texto bom, Nádia!! E um tapa, também. Pq é mt doloroso o despertar. Mas, se nos mantivermos acordados, não há dor. Lindo e belamente descrito, também.

Amém aos seus votos! Que despertemos e saiamos correndo em direção à vida.

Obrigada!
Albir disse…
Que beleza, Nádia!O final me surpreendeu e me encantou.
Unknown disse…
Muito bom Nádia!! O retrato do cotidiano do homem moderno...
Carla Dias disse…
Que bacana, Nádia! As nossas sempre presentes prisões particulares.

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