NÉLIDA, GRAVETINHO, BICHOS >> Sergio Geia



Não vou escrever sobre elas, as maritacas, pelo menos hoje, mas quase todas as manhãs elas voam aqui perto; devem morar nas árvores da Santa Teresinha. Cantam alto, forte. Andam em grupo, mas sempre de duas em duas. Serão casais? E cantando, numa felicidade de causar inveja. Não vou escrever, mas achei que valia a pena pelo menos uma menção, uma fotografia; quem sabe, um dia, uma crônica inteira, um álbum. 

Leio até com os ouvidos. Embora esse seja o slogan da 451 MHz, minha leitura usou Ilustríssima Conversa, o podcast da Folha, numa entrevista pra lá de saborosa que Nélida Piñon concedeu ao jornalista Marco Rodrigo Almeida. Aliás, atenção: podcast é o que há, gente! Se você, como eu, pega estrada todos os dias, além de ouvir música, uma boa pedida é ouvir podcasts. Tem muita coisa boa. Indicação? Ilustríssima Conversa, 451 MHz, Papo H, com a lindíssima e simpática Bárbara Duarte e o editor do site Canal Masculino Ricardo Terrazo Jr. 

Nélida lançou “Uma furtiva lágrima”, que condensa impressões da autora após receber uma sentença de morte. Diagnosticada com no máximo 1 ano de vida, o mundo caiu. Passado o pico do susto, Nélida tratou de organizar sua despedida, e pensou, por que não?, em escrever uma espécie de diário da morte, nada poético, aliás, pois não há poesia na morte, escreveu. Ao passar por um segundo médico, Nélida descobriu que o diagnóstico primeiro revelava-se equivocado; tomou remédios, recuperou-se, para a sua alegria e nossa. 

Anulada a sentença, sua verve literária explodiu. Terminou “Uma furtiva lágrima”, passou um ano em Portugal escrevendo um romance, prepara um livro sobre a arte da narrativa, e outro dedicado ao seu cãozinho Gravetinho, que morreu em 2017. 

Sobre Gravetinho, Nélida falou: 

Ele sempre foi muito carinhoso comigo, ele sempre me ajudou a crescer. Eu dizia: não nos deixe, fique Gravetinho, e ele foi embora. Com ele eu descobri a importância extraordinária dos animais na vida humana. E me tornei alguém que tenta entender a natureza profunda dos animais que são tão desprezados pelo humano e são tão maltratados. Nós exercemos crueldades como se a crueldade pudesse ser aperfeiçoada. Em quem? Nos animais, depois nos humanos, pois quem maltrata os animais, maltrata os humanos. 

Numa outra passagem, ela disse: 

O Gravetinho sentava-se na sala de jantar e seu olhar atravessava a janela e pousava, penso eu, no céu, no firmamento, e ficava com uma postura transcendente, eu achava que era hora da meditação dele e não deixava ninguém atrapalhá-lo. (...) O médico disse que eu devia afastar os animais, que não podia conviver com os bichos, que não era bom para a minha enfermidade. Eu disse: não é possível. Se eu tiver que renunciar aos meus afetos humanos e animais, eu prefiro acelerar a morte, como é que eu vou abrir mão dos afetos? O afeto é um pilar civilizatório, você exercita sua humanidade atestando a febre do seu amor, de sua benquerença. 

Pensei, enquanto dirigia até Jacareí: como é raro no cotidiano encontrar momentos assim, esse tipo de bebida que Nélida tão bem me oferecia através de uma inteligência refinada, uma sabedoria ímpar, uma humanidade abissal; embriaguei-me até cair de alegria. 

Em segundos, fui parar na Domingos Cordeiro Gil, lá vi a Princesa correndo pelo quintal, uma cadelinha que adorava Bis — naquele tempo não havia ração, cachorro comia comida mesmo, arroz, carne —, que adorava dormir sobre as pernas longilíneas do meu pai que ficavam esticadas até a mesinha de centro. Depois dei um corte e fui ver Linda Bela latindo ao ouvir a campainha, poodle branquinha e ardida, que viveu conosco por muitos anos, e percebi que minha humanidade foi moldada com a ajuda dessa família de bichinhos. 

E viajei até o amor que transborda todos os dias de uma amiga, Francine Presoto, por seu gatinho (Chico?). A paixão e cuidados maternos que Adriana Miranda ofereceu a Lia e Ted. O carinho do rabugento Francisco Ferro por sua Lina Luísa. E de afetos lindaços como Kako, Mino, Judi, Dorothéa, Godofredo, Jorginho, Meg, Joaquim Barbosa, Fred, Bart, Luigi, Mia, Téo, Sultão, Fubá, Mortadela, Frajola, Arthur, Pandora, Lucy, Gil e tantos outros que aperfeiçoam a humanidade de pessoas queridas.


Nélida Piñon





Comentários

Zoraya Cesar disse…
Que singela, que amorosa essa crônica. Acabei relendo ao som de Diana, do Boca Livre. Perfeita leitura para um domingo que se acaba.
Nadia Coldebella disse…
Estou aqui, lágrimas nos olhos. Tenho uma cachorrinha, a Yumi, encontrada na rua, há alguns anos. Me conquistou devagarinho, com aquele olhar preto e profundo. Ela está muito doente e descobri que não sou dona dela, não me sinto dona, ela escolheu a gente. Somos tutores, ela é parte da nossa família. Como pode a gente amar tanto um bicho? Tanto que chega a dar um nó no coração da gente só a possibilidade de eles irem embora?

Linda cronica, lirica, cheia de um tipo de afeto que vemos ainda muito pouco por aí.
sergio geia disse…
Lindas Zoraya e Nádia, obrigado pelos comentários. A relação com os animais é profunda e só tem a enriquecer o humano.

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