para os que não voltaram - parte III >>> branco
ato V
o bêbado precoce
15h29
o bêbado precoce
está sentado na grama da praça
olha para o prédio que está sendo construído
enquanto divide
seu naco de pão com um vira-lata
está bêbado desde as primeiras horas
da mesma maneira como estava
na noite anterior
seus olhos enevoados
observam o trabalho dos homens na obra
- o cantar dos pedreiros
o sobe e desce do elevador de carga
as latas
os sacos de cimento
e o pó -
imagina que vai ter que conseguir
novo financiador para o seu sustento
- e vício -
que Deus guarde o bom homem - ele pensa -
enquanto lembra do velho senhor de olhos azuis
- e camisa azul clara -
que todas as manhãs o abastecia
de pão leite e café
e com um sorriso maroto
dava-lhe a moeda para o primeiro trago
nunca mais a grande casa azul
nunca mais aquela camisa azul clara
nunca mais aqueles olhos azuis
os tempos mudaram novamente
os tempos sempre mudarão
seus pensamentos confusos
o conduzem ao passado
- outro lugar -
era também uma cidade do interior
o futuro prometia risos
- o futuro curso de carpinteiro
a futura mulher
os futuros filhos -
mas o presente tinha lhe dado lágrimas
- a jovem bonita e travessa
as juras de amor
o beijo roubado
o jovem afortunado
que insistia em menospreza-lo
em ferir seu orgulho
e roubar seu bem mais precioso -
foi em uma noite rotineira
ao sair do emprego
ele viu os dois jovens no beco escuro e sujo
reconheceu a beleza da jovem
também reconheceu o riso sarcástico
e
- como se fosse uma personagem de folhetim barato -
cego e louco
e sangue - muito sangue -
mais do que poderia imaginar
lembrou-se que o agarraram
bateram e o deixaram em uma sala pequena
havia grades
e quando o homem bem vestido chegava
era levado para outra sala
davam-lhe bebida - muita bebida -
lembrou-se de como o colocavam de 4
e tapavam sua boca
e de como ele chorava
chorou muitas vezes
até que um dia
entorpecido pela dor e bebida
parou de chorar - parou de sentir -
após alguns anos o jogaram na rua
perambulou por ela e pelos bares mendigando
foi quando percebeu que aquela cidade
não era mais sua
voltou ao presente
sua cabeça doía e não o ajudava
a se lembrar de mais nada
15h34
ouviu o primeiro estalido
voltou a olhar para o prédio em construção
a tempo de ver o primeiro corpo caindo do andaime
- outros estalidos -
um grande e ensurdecedor estrondo assustou o vira-lata
- que correu para longe -
tentou se levantar
mas as pernas - e o cérebro alcoolizado -
não permitiram
e enquanto o barulho de concreto e aço diminuía
- contraste -
os gritos de dor e agonia aumentavam
- por instinto
também gritou -
gritos
sirenes
e pessoas se misturavam
ante seu embotado olhar
sempre confuso
pareceu - re - sentir
afinal aqueles peões estavam construindo o futuro
e outros prédios viriam
seus estranhos pensamentos
oscilavam entre a revanche e a pena
foi novamente chamado à realidade
pelo latido do vira-lata que voltava
olhou ao redor e reconheceu pessoas
as mulheres dos seios exuberantes dos finais de semana
um homem com um jornal embaixo do braço roçava-lhes a bundas
como se para ver melhor a tragédia
os homens que o olhavam com desprezo e precaução também estavam ali
os - cada vez mais raros - velhos
deixaram seus jogos de damas interminados
- na pressa -
as senhoras não trouxeram seus rosários
mas murmuravam palavras em oração
o homem quieto - que dizem ser poeta - não sorri
está pálido quando seus olhares se encontram
-olhares enevoados -
vê os corpos sendo retirados
eles não voltariam para suas casas
- para suas mulheres
seus filhos
seus aparelhos de tv
seus futuros -
vê sangue sobre os corpos
- muito sangue -
mais do que poderia imaginar
e assim enlouquecido começa a gargalhar
e todos os olhares se voltam para ele
perplexos
Comentários
Um alcoólatra
Deixou de viver
Um
Mundo real
Vive hoje num mundo de faz de conta
E sofre muito
Em raro momento de lucidez